200 anos de Sistema da Dívida no Brasil

Seu candidato já se comprometeu com a realização da auditoria da dívida?” Recomendamos o artigo de Maria Lucia Fattorelli, coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida e membro titular da Comissão Brasileira Justiça e Paz da CNBB, publicado pelo Monitor Mercantil.


Depois de anos investigando a dívida pública no Brasil e em outros países criei a expressão “Sistema da Dívida”, a fim de caracterizar o funcionamento do endividamento público às avessas, isto é, em vez de ser um importante instrumento de financiamento de investimentos estatais de interesse da população, temos verificado que a chamada dívida pública tem servido para retroalimentar os mecanismos que geram essa chamada dívida, além de servir de justificativa para contínuas privatizações insanas, contrarreformas que retiram direitos sociais, cortes orçamentários principalmente em saúde e educação, além do teto para gastos sociais, sacrificando toda a nação.

A principal característica do Sistema da Dívida é a ausência de contrapartida da dívida, isto é, o estoque da dívida aumenta, mas o dinheiro não chega ao orçamento público para ser investido em áreas de interesse da sociedade que irá pagar a conta. Esse dinheiro é consumido em mecanismos financeiros que alimentam o próprio Sistema da Dívida e favorecem principalmente os bancos e grandes rentistas, a exemplo da indecente remuneração diária da sobra de caixa dos bancos, que denominamos bolsa-banqueiro, pois é uma verdadeira doação de dinheiro a bancos, sem justificativa que se sustente.

O Sistema da dívida atua no Brasil há 200 anos: “A dívida nasceu com a Independência, cresceu no Império e na República, e multiplicou-se mais em consequência de operações de consolidação e de ‘fundings’ [1] do que da utilização de recursos de capital para obras reprodutivas (…).” [2]

O primeiro empréstimo externo brasileiro foi destinado a cobrir rombos da Coroa portuguesa que, desde a sua chegada ao Brasil em 1808 gerou contínuos déficits para cobrir os seus vultosos gastos. Quando deixou o Brasil, em abril de 1821, D. João VI deixou aqui um elevado rombo e, ainda por cima, esvaziou os cofres do Tesouro e do Banco do Brasil, pois levou em sua frota toda a reserva de ouro e prata, além de artigos de valor, inclusive espécimes de ouro e diamantes que pertenciam ao Museu.

Assim, em 1824, foi contratado o empréstimo externo no valor de 3 milhões de libras esterlinas, porém, o país assumira o compromisso efetivo de 3,6862 milhões de libras esterlinas, pois o empréstimo era do Tipo 81, em média, ou seja, cerca de 19% do valor sequer era desembolsado pelo emprestador. Os juros pactuados eram de 5% ao ano, garantidos por rendas de todas as Alfândegas do Brasil. Esse empréstimo foi contraído junto a banqueiros ingleses: 1 milhão de libras esterlinas com Bazeth, Farqhuar, Crawford & Co., Fletcher, Alexander & Co., Thomas Wilson & Co. (Tipo 75), e 2 milhões de libras com a Nathan Mayer Rothschild (Tipo 85).

A negociação foi feita por representantes que ainda levaram 2% de comissão sobre o empréstimo, além de outras comissões extraordinárias: Felisberto Caldeira Brant Pontes, Manoel Rodrigues Gameiro Pessoa e Mariano José Pereira da Fonseca, o que mostra que a corrupção, uma das engrenagens do Sistema da Dívida, também já atuava no Brasil Império.

A fim de obter o reconhecimento político da independência declarada por D. Pedro I em 1822, ele negociou o Tratado da Independência em 1825, do qual fazia parte a Convenção Secreta Adicional, mediante a qual assumiu a responsabilidade do empréstimo contraído por Portugal em 1823, no valor de 1,4 milhão de libras esterlinas, além de outra obrigação de indenização a Dom João VI, por propriedades deixadas no Brasil, no valor de 600 mil libras esterlinas.

Até aí, todos esses empréstimos foram contraídos para assumir obrigações da Coroa portuguesa, tanto internas [3] como externas, portanto, sem contrapartida alguma em investimentos de interesse do governo imperial, o que caracteriza a atuação do que denominamos Sistema da Dívida.

Outra característica do Sistema da Dívida verificada ao longo da história é o surgimento de normas legais para dar institucionalidade a operações ilegais realizadas sob o manto da “dívida pública”, a exemplo da flagrantemente inconstitucional operação de “securitização de créditos públicos”, que vincula receitas tributárias ao pagamento de dívida ilegal gerada por esse esquema, o que se tentou “legalizar” por meio de dispositivos inseridos de contrabando na PEC 23 em 2021. Apesar de não aprovado tal dispositivo, o esquema segue funcionando de forma ilegal e inconstitucional…

Verificamos que essa característica de se fazer “adaptações legais” está presente há 200 anos, por exemplo: somente em 10 de abril de 1826 foi ratificado o acordo referente à indenização de 600 mil libras esterlinas a Dom João VI. Por sua vez, somente em 1827, depois que já havia sido contraído empréstimo externo e já vinham sendo pagas as dívidas aqui deixadas pela Coroa Portuguesa, surgiu a Lei de 15/11/1827 reconhecendo todas as dívidas de qualquer natureza.

Essa mesma lei de 1827 criou a “Caixa de Amortização” para garantir o pagamento da dívida pública, a qual era administrada por uma maioria de 5 capitalistas que mais apólices (títulos da dívida) possuíssem, e, por não serem remunerados nessa atividade, deveria “ter o Governo muito em contemplação os serviços que prestarem como relevantes”. Por ser maioria, eram esses 5 capitalistas que, de fato, detinham o poder decisório.

Até hoje, quem manda no Sistema da Dívida são os maiores detentores de títulos públicos – os grandes bancos. São estes que influenciam na determinação das taxas de juros – tanto a Selic (pois são convidados para reuniões secretas realizadas pelo Banco Central a cada 3 meses), como a taxa de juros dos títulos públicos, pois atuam como dealers, que têm acesso privilegiado na compra dos títulos públicos lançados pelo Tesouro Nacional, e só compram quando a taxa alcança o patamar que desejam.

São inúmeros os episódios que comprovam o poder de mando e o privilégio dos grandes bancos sobre a gestão da dívida pública no Brasil. Na década de 60, os bancos foram autorizados a se endividarem à vontade no exterior (Resolução 63/1967 do Banco Central) e, posteriormente, na década de 80, grande parte dessas dívidas privadas foram transformadas em dívida pública, a cargo do Banco Central, transferindo-se o ônus de seu pagamento para o conjunto da sociedade.

Em 1829, outro empréstimo externo foi contraído em condições ainda mais onerosas, pois foi do Tipo 52, ou seja, receberíamos 400 mil libras esterlinas, porém, assumimos uma obrigação financeira de 769,2 mil libras esterlinas, sob a garantia das rendas da Alfândega do Rio de Janeiro. Mais uma vez, o dinheiro obtido com esse empréstimo destinou-se a cobrir os onerosos pagamentos das obrigações anteriormente assumidas em 1824 e 1825.

As condições eram tão infames que embora os contratos tivessem sido firmados somente em julho, os juros foram exigidos como vencidos desde abril. Segundo Bouças [4], esse empréstimo de 1829 ainda tinha saldo remanescente em 1859, no valor de 508 mil libras esterlinas, quando foi substituído por novos títulos emitidos, “custando aos cofres públicos, para liquidá-lo, 461% mais que o capital real rendera.”

Assim, deixamos de ser colônia de Portugal e passamos a ser “colônia de banqueiros”, como denominou Gustavo Barroso em seu livro [5].

A falta de transparência e controle é outra característica do Sistema da Dívida, vigente desde os seus primórdios, com breve interrupção no governo de Getúlio Vargas, que instituiu, em 1931, a Comissão de Estudos Financeiros e Econômicos dos Estados e Municípios, depois transformada em Conselho Técnico de Economia e Finanças do Ministério da Fazenda, dirigido por Oswaldo Aranha, que fez o levantamento completo e minucioso da dívida externa, interna (denominada fundada, cujos encargos eram elevadíssimos), receitas e despesas, além de atividades produtivas, capacidade industrial e agrícola, exportação e importação, ou seja, realizou auditoria integral da dívida pública brasileira, o que permitiu a revisão do doentio processo que já perdurava por mais de um século, alcançando a regularização da situação da dívida externa durante décadas, até o início de novo ciclo com a ditadura militar em 1964.

Este artigo traz apenas algumas informações sobre os 200 anos de atuação do Sistema da Dívida que iremos contar em livro que está sendo preparado, e que mostra claramente o papel da chamada dívida pública como uma trava ao nosso desenvolvimento socioeconômico, quando deveria ser o contrário!

A ferramenta para enfrentar esse funcionamento distorcido do Sistema da Dívida é a auditoria, como demonstrado durante o governo de Getúlio Vargas, no Brasil, e também no Equador, sob a presidência de Rafael Correa (2007/2008).

Estamos em ano eleitoral, e é imprescindível que candidatos(as) se comprometam com a realização da auditoria da dívida, com participação social. A Auditoria Cidadã da Dívida fez a sua parte e elaborou carta aberta aos partidos, acompanhada de questionário a ser respondido por candidatos(as). Seu candidato(a) já respondeu?

A participação cidadã durante o período eleitoral é fundamental e precisa ocorrer de forma qualificada e consciente. Afinal, iremos escolher quem irá dirigir o país e todos os estados nos próximos 4 anos! 200 anos de Sistema da Dívida basta! Auditoria já!

[1] Operação destinada ao pagamento de dívidas anteriores

[2] Bouças, Valentim F., História da Dívida Externa da União – Volume XV da série finanças do Brasil (1824-1937). Jornal do Comércio – Rio de Janeiro (1945), página V

[3] Além desses empréstimos externos, outras obrigações internas foram assumidas na época, em especial o empréstimo de 400 mil contos de réis, chamado por alguns autores de “empréstimo da independência”, porque foi autorizado em 30/07/1822: (…) ‘para atender às despesas também maiores com a consolidação da Independência’.” (Anderson Caputo Silva, 2009, pág. 33)

[4] Bouças, Valentim F., História da Dívida Externa da União – Volume XV da série finanças do Brasil (1824-1937). Jornal do Comércio – Rio de Janeiro (1945), página 40.

[5] Barroso, Gustavo, Brasil: Colônia de Banqueiros. Revisão Editora Ltda. Porto Alegre (1989), 4ª edição.

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