Ana D´Avila | Confissões no divã

Neste dia seus olhos brilhavam. De expectativas. De deslumbramento. Final da manhã de quarta-feira. Novidades na cidade. Novas luzes. Novas pessoas. E a sinaleira verde deixando os carros passar. A cafeteria escondia tortas fresquinhas e salgados recém produzidos. Sentaram-se e pediram café. “Dois cappucinos, por favor”! Na mesa, vaso com uma rosa e galhinhos verdes. Guardanapos e sorrisos. Num deles foi rabiscada a frase: “Te amo”.

Uma longa história foi narrada. Começada. Contada com olhos curiosos para ouvidos atentos. A viagem foi feita para a Argentina nos anos oitenta. Estranhas paisagens e vinícolas de qualidade. Ali fabricavam um néctar para um vinho especial, que mais tarde foi delicadamente provado. Aprovado e  jamais esquecido. Ele desenhava rostos e marcas, numa publicidade quase artesanal. Publicitário nato. Vendia textos, comercializava produtos. Sem deixar de pensar no amigo da estrada. Aquele com quem compartilhou episódios de sua vida.

Jamais o esqueceu. Assim como  os vinhos produzidos naquele local. Tudo tinha sabor, aroma e calor. Ao desabrochar de uma amizade duradoura. Como quê marcados para o não esquecimento.   Esquecendo para que e por quê. Se tudo aquilo era sublime. Como sua paixão pela profissão. Como as mulheres que amou. Como os livros interessantes que leu. Sonhava com a Medicina, mas  acabou enveredando por um caminho análogo: estudo da mente. Talvez ditados por mãos femininas que sempre o afagaram. Seu trabalho diário era dentro da psicanálise. Amava o que fazia. E o que conseguia captar de seus pacientes.

Todos tinham incompreensões estruturais. Todas tinham problemas de relacionamento. Pensava neles. Para onde caminhavam neste simples dia da semana? Teriam estancado suas emoções abaladas por vivências de escolhas erradas. Mas a vida é erro e acerto. Também ele se questionava. Estaria  na profissão certa? Conseguiria apaziguar o sofrimento daquelas pessoas? Sua secretária anotava com estranho profissionalismo os dados dos pacientes. Alguns impacientes.

Na ante-sala,  pernas cruzadas. Mãos trêmulas e esperanças. A esperança de que ele resolvesse as confusões mentais delas. Um a um foram entrando no consultório psicanalítico. Uma paciente, loira, alta e bela, adentrou a sala chorando. O que teria lhe causado o sofrimento? Ninguém sabia. Só o analista. Que com olhar humano estendeu-lhe a mão. “Confia, querida. Vou ajudá-la.”

Depois na cafeteria um largo sorriso. A garçonete despediu-se deles. Sem saber exatamente quem eram o que se passava. Acreditava que era um casal de namorados. Ou duas pessoas cultas que se identificavam entre gostosas taças de café com leite. Com suas vidas aristocráticas, intelectuais e em absoluta tranquilidade.   

 A garçonete levou a louça até a pia. Uma das xícaras tinha mancha de batom rosa na borda. Eles pagaram a conta e se retiraram. E… foram indo pela rua num compasso silencioso. Só interrompido por sirenes de ambulâncias e gente apressada. Pressa que, para eles não existia. Amar e deixar a vida transcorrer era sua  bandeira. Eles não necessitavam correr. Trabalhavam, rezavam e amavam. No final, tudo acontecia devagar. Tudo chegava de mansinho. Suave. Sem pressa, sem culpa e sem atrasos.

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