Ela acreditava que escrevendo expulsaria os demônios que povoavam sua vida. Que escrever era libertar-se das amarras primeiras que viviam nela desde a infância. Era problemática, mas era feliz. Ao longe avistava um morro que esverdeava a paisagem, na escaldante manhã de março. O contraste era o marrom dos telhados das casas entre as copas verdes das árvores.
Atipicamente uma fina neblina escorria do morro. Envolvendo as casas que insistiam em existir ali. Deve ser aterrador acordar pela manhã, abrir a janela do quarto e ver um paredão à frente de seus olhos. Sentindo-se quase, como quê enterrada viva. Mas por falta de dinheiro ou opção muitas pessoas moram nestes lugares. Abaixo ou encima de morros, sem entender exatamente o porquê.
Mas ela morava bem distante do morro. Em terra firme num ângulo fabuloso. Seguia em seus textos, pensamentos e motivação. Que era obsessivamente, só um: escrever. Até a exaustão. Como se as teclas do computador fossem uma espécie de confessionário. Ou algum doutor da psicanálise. Sigmund Freud afirmava que tudo tinha origem no sexo. Talvez esta perseguição de frases e palavras fosse uma espécie de ato sexual. E que depois da escrita concluída, aconteceria um explosivo e prazeroso orgasmo.
Seja lá como fôr, escrever para ela, era um ato mágico e necessário. E se manifestava em formas sutis e únicas. Como se o Cosmos assim exigisse. Como se as ideias fossem transportadas até ela de algum lugar distante. Estaria psicografando? Estaria expressando algo sobrenatural? Ernest Hemingway ou Freud lhe ditavam regras? Só não gostaria de acabar como o escritor. Que na falta de inspiração, suicidou-se. Escrever é existir na consciência, no belo e na vida.
Frei Beto, o escritor engajado, escreveu uma obra sobre a arte de escrever. Um dia, na terra dos cupins, uma traça devorou seu livro ou uma família inteira de traças, devorou o livro. As páginas ficaram irreconhecíveis. Com aquelas profundas veias de vazio, entre as palavras. O exemplar do livro foi danificado, após ter morado por alguns anos, numa biblioteca povoada por traças. O livro do Frei Beto já não era tão definitivo. Pereceu. Morreu.
O dia em que ela não escrevia, parecia que lhe faltava algo necessário à sobrevivência. Era como gestar e parir. Expulsar a criação. Expelir o feto. Concluir um texto. E assim, após anos e anos escrevendo, conseguiu aprender com o gênio das letrinhas. E foi juntando muitas letras que nasceu a ideia da condensação do livro. Que poderia depois, estar entre parentes, amigos ou à venda em alguma livraria. À disposição de quem apreciasse ler. E que, como ela, tivesse optado por resistir à loucura estabelecida. Quer lendo ou escrevendo. (Ana D´Avila)