“Os líderes chinês e russo revelaram seu compromisso conjunto de redesenhar a ordem global, uma empreitada ‘jamais vista’ nos últimos 100 anos”. Recomendamos o artigo do jornalista Pepe Escobar, publicado no Asia Times e traduzido por Patrícia Zimbres para o 247
O que acaba de acontecer em Moscou foi nada menos que uma nova Yalta, que, incidentalmente, localiza-se na Criméia. Mas, diferentemente do potentoso encontro do Presidente dos Estados Unidos Franklin Roosevelt, do Líder Soviético Joseph Stalin e do Primeiro-ministro britânico Winston Churchill, na Criméia governada pela URSS, em 1945, esta, possivelmente, é a primeira vez em cinco séculos em que nenhum líder político ocidental participa da formulação da agenda global.
É o Presidente chinês Xi Jinping e o Presidente russo Vladimir Putin que agora comandam o espetáculo multilateral e multipolar. Os excepcionalistas ocidentais podem empregar suas táticas lamurientas o quanto quiserem e bem entenderem: nada irá alterar a ótica espetacular e a substância subjacente dessa ordem mundial sendo desenvolvida, especialmente para o Sul Global.
O que Xi e Putin pretendem fazer foi explicado em detalhes antes da cúpula, em dois editoriais de autoria dos próprios presidentes. Tal como um balé russo altamente sincronizado, a visão de Putin foi expressa no People’s Daily, da China, focando uma “parceria rumo ao futuro”, enquanto a de Xi foi publicada na Russian Gazette e no website RIA Novosti, tratando de um novo capítulo na cooperação e no desenvolvimento.
Desde o início da cúpula, as falas de Xi e Putin levaram a turma da OTAN a um frenesi histérico de ira e inveja: a porta-voz do Ministério de Relações Exteriores russo, Maria Zakharova, captou à perfeição o clima reinante, ao observar que o Ocidente “espumava de ódio”.
A primeira página da Russian Gazette de segunda-feira foi icônica: Putin visitando Mariupol, agora livre de nazistas, conversando com moradores, lado a lado ao editorial de Xi. Essa, para resumir, foi a sucinta resposta de Moscou à treta do MQ-9 Reaper e à farsa do tribunal espúrio da Corte Penal Internacional: “Espumem de ódio” o quanto quiserem, a OTAN vem sendo vergonhosamente humilhada na Ucrânia.
Em seu primeiro encontro “informal”, Xi e Putin conversaram por nada menos que quatro horas e meia. Ao final, Putin, em pessoa, acompanhou Xi a sua limusine. Essa conversa tratou do cerne da questão: o mapeamento dos contornos da multipolaridade – que começa com uma solução para a Ucrânia.
Como seria previsível, os sherpas deixaram vazar muito pouco, mas um desses vazamentos foi bastante significativo, tratando de sua “conversa de grande profundidade” sobre a Ucrânia. Putin, em termos muito corteses, ressaltou que respeita a posição da China – expressa no plano de 12 pontos para a resolução do conflito, que foi totalmente rejeitada por Washington. Mas a posição russa continua blindada: desmilitarização, neutralidade da Ucrânia e formalização dos novos fatos territoriais.
Paralelamente, o Ministério das Relações Exteriores russo descartou por completo a participação dos Estados Unidos, do Reino Unido, da França e da Alemanha nas futuras negociações sobre a Ucrânia: esses países não são vistos como mediadores neutros.
Uma colcha de retalhos multipolar
O dia subsequente foi para tratar de negócios: tudo, desde energia e cooperação “militar-técnica” até o aperfeiçoamento da eficácia do comércio e dos corredores econômicos que cortam a Eurásia.
A Rússia já é a maior fornecedora de gás natural para a China, superando o Turcomenistão e Catar. A maior parte desse fornecimento segue pelo gasoduto Power of Siberia, de 300 quilômetros de extensão, que vai da Sibéria até a província de Heilongjiang, ao nordeste da China, inaugurado em dezembro de 2019. As negociações relativas ao gasoduto Power of Siberia II, que atravessa a Mongólia, estão avançando em ritmo acelerado.
A cooperação sino-russa em alta tecnologia aumentará exponencialmente: 79 projetos com investimentos de mais de 165 bilhões, cobrindo tudo desde gás natural liquefeito (GNL) até construção aeronáutica, de máquinas-ferramenta, pesquisa espacial, agroindústria e corredores econômicos aperfeiçoados.
O presidente chinês declarou explicitamente que pretende ligar os projetos da Nova Rota da Seda à União Econômica Eurasiana (UEEA). Essa interpolação ICR-UEEA é uma evolução natural. A China já assinou um acordo de cooperação econômica com a UEEA. As ideias do hiperestrategista macroeconômico Sergey Glazyev finalmente estão dando frutos.
E por último, mas não menos importante, os pagamentos mútuos em moedas nacionais ganharão novo impulso – e também entre Ásia e África, e América Latina. Para todos os fins práticos, Putin endossou o papel do yuan chinês como a moeda comercial preferencial enquanto procedem as complexas discussões sobre uma nova moeda de reservas lastreada no ouro e/ou commodities.
Essa ofensiva conjunta econômico-empresarial conecta-se com a ofensiva diplomática articulada entre Rússia e China, visando a reconfigurar vastas regiões do Oeste Asiático e da África.
A diplomacia chinesa funciona como uma matryoshka (as bonecas encaixadas russas) em termos de comunicar mensagens sutis. Não é de modo algum uma coincidência que a viagem de Xi a Moscou tenha coincidido exatamente com o 20º aniversário da Operação ‘Choque e Terror’ e da invasão, ocupação e destruição ilegais do Iraque.
Paralelamente, mais de 40 delegações da África chegaram a Moscou um dia antes de Xi, para participar da conferência parlamentar “Rússia-África no Mundo Multipolar”, em preparação para a segunda cúpula Rússia-África a ter lugar em julho próximo.
A área ao redor do Duma se assemelhava aos dias do antigo Movimento Não-Alinhado (MNA), quando a maior parte da África mantinha relações anti-imperialistas muito próximas com a URSS.
Putin escolheu esse exato momento para perdoar a dívida africana de mais de 20 bilhões de dólares.
O Oeste Asiático, Rússia e China vêm atuando em total sincronia. A reaproximação Arábia Saudita-Irã, na verdade, foi desencadeada pela Rússia em Bagdá e Omã: foram essas negociações que levaram à assinatura do tratado em Pequim. Moscou vem também coordenando as discussões de reaproximação Síria-Turquia. A diplomacia russa com relação ao Irã – agora sob status de parceria estratégica – é mantida em uma outra linha de atuação.
Fontes diplomáticas confirmam que os serviços de inteligência chineses, baseando-se em investigações próprias, está agora plenamente convencido da ampla popularidade de Putin em toda a Rússia, e mesmo em meio às elites políticas do país. O que significa que conspirações de tipo mudança de regime estão fora de questão. Essa certeza foi fundamental para a decisão de Xi e do Zhongnanhai (a sede administrativa onde se reúnem membros do partido e do governo) de “apostar” nos anos vindouros, levando em conta que Putin talvez concorra nas próximas eleições presidenciais e saia vitorioso. A China sempre privilegia a continuidade.
A cúpula Xi-Putin, então, selou definitivamente a parceria estratégica ampla de longo prazo entre China e Rússia, que se comprometeram a desenvolver uma séria concorrência geopolítica e geoeconômica com os decadentes hegêmonas ocidentais.
Esse é o novo mundo nascido em Moscou nesta semana. Putin, anteriormente, o havia definido como uma nova política anticolonial. Agora ele se coloca como uma colcha de retalhos multipolar. Não há volta possível na demolição dos remanescentes da Pax Americana.
“Mudanças que há 100 anos não aconteceram”
Em Before European Hegemony: The World System A.D. 1250-1350 (Antes da Hegemonia Europeia: O Sistema Mundial em 1250-1350 AD), Janet Abu-Lughod construiu uma narrativa cuidadosamente montada para mostrar a ordem multipolar que prevalecia quando o Ocidente “era mais atrasado que o Oriente”. Mais tarde, o Ocidente “só conseguiu tomar a dianteira porque o ‘Oriente’ estava temporariamente desorganizado”.
Talvez estejamos assistindo o início de uma transição igualmente histórica, trespassada por uma renascença do confucionismo (respeito pela autoridade, ênfase na harmonia social), o equilíbrio inerente ao Tao e o poder espiritual da Ortodoxia Oriental. Trata-se, de fato, de um embate civilizacional.
Moscou, dando por fim boas-vindas aos primeiros dias ensolarados da primaveram, ofereceu, esta semana, uma espetacular ilustração de “semanas quando décadas acontecem”, comparadas a “décadas quando nada acontece”.
Os dois presidentes se despediram de forma comovente.
Xi: “Vemos agora mudanças que há cem anos não acontecem. Quando estamos juntos, damos impulso a essas mudanças”.
Putin: “Concordo”.
Xi: “Cuide-se, caro amigo”.
Putin: “Tenha uma boa viagem”.
Saudações ao novo dia que nasce, das terras do Sol Nascente às estepes eurasianas.