‘Fiscalismo’ da imprensa empodera Lira e faz aliança objetiva com golpismo

Recomendamos o artigo do jornalista Reinaldo Azevedo, publicado em sua coluna no UOL


Luiz Inácio Lula da Silva, presidente eleito, deveria chutar o pau da barraca. Não! Nada de discurso incendiário ou de mobilizar os “sans-culottes” contra os trajes da “responsabilidade fiscal”. Fora de moda. Deveria convidar — e é provável que não aceitassem — algumas das penas mais estridentes contra a PEC da Transição para que apresentassem uma solução. Não foram eleitos, eu sei, nem têm a obrigação de comparecer com uma resposta para o problema que anunciam, exigência que se faz a adolescentes na prova de redação do Enem. O mais abusado dos que recusariam o convite até poderia dizer, cheio de marra: “Não é meu papel; isso é com os políticos”. Sei…

Em ambiente em que tudo se degrada, não seria a cobertura e a análise políticas a escaparem incólumes. Em tempos assim, também as metáforas não precisam escalar o pódio da qualidade. Fiquemos nas óbvias: temos excelentes críticos de árvores. Dane-se a floresta. Cada um vê em seu microscópio esse ou aquele detalhes e nada dizem ou sabem do conjunto, para lembrar a personagem Martha, de “Quem Tem Medo de Virginia Woolf”, de Edward Albee.

Com todas as vênias, ou nem todas, é absolutamente indigno, caminhando para a indecência explícita, que a PEC da Transição — e os R$ 145 bilhões pedidos — não seja analisada vis-à-vis a patuscada orçamentária do ano que vem, encaminhada pelo governo de Paulo Guedes-Jair Bolsonaro. Eu a chamo de “PEC da Responsabilidade Orçamentária” não por espírito de provocação. Ou não só por isso ao menos. Agrada aos “Mercáduz” que se fale em indecorosos R$ 80 bilhões, como defendem os patriotas do bolsonarismo, por exemplo. O “responsável fiscal”, nessas horas, têm frêmitos de suposta ortodoxia. Será? Não está ligando o sintoma à doença. O nome disso é alienação e, em linguagem moral, impiedade com os pobres. Não é por maldade. É burrice, é falta de leitura, é falta de intimidade com o Brasil. Essa certa inocência estúpida não compreende o PL de Valdemar Costa Neto, claro, o novo Schopenhauer da reponsabilidade fiscal… Nesse caso, é malandragem mesmo.

Como? R$ 80 bilhões? Nada menos de R$ 70 bilhões iriam para o Bolsa Família, que, de resto, ficou todo desconjuntado e certamente com deseconomia de recursos em razão do eleitoralismo doidivanas. “Uzmercáduz” não deram muita bola porque, afinal, a bagunça poderia colaborar para a eleição de Bolsonaro, o “responsável fiscal”. Os R$ 10 bilhões que sobrariam teriam de dar conta do resto, numa peça orçamentária que cassou R$ 16,7 bilhões da Saúde, mais de R$ 5 bilhões da Educação — a despeito dos sortilégios em curso — e que destinou R$ 34 milhões para o Minha Casa Minha Vida. Para onde quer que se olhe, há desastre e desolação.

Não foram Lula nem o PT a empoderar Arthur Lira e sua tropa nestes quatro anos de descalabro. O agigantamento das “Emendas do Relator” foi o preço que Bolsonaro pagou para poder levar adiante a sua pregação golpista sem correr risco nenhum no Congresso. A PGR o blindava e blinda nos crimes comuns. A maioria comprada a leite de pata o protegeu dos crimes de responsabilidade que cometeu. O presidente que mais rosnou autoritarismos era e é um fraco. Depois de eleito, teve de comprar a manutenção de seu mandato com dinheiro do Orçamento.

A PEC da Transição, à diferença do que se diz, não é uma aposta na farra. Trata-se apenas de recompor o Orçamento para garantir a governabilidade. Não dá para contar a história que não houve, mas podemos intuir algumas coisas a partir dos dados da realidade: de quanto seria a PEC de Bolsonaro caso tivesse sido reeleito? Guedes iria repetir o superávit primário? Ora, mesmo o Orçamento picareta que lá está traz é déficit primário, o que também se ignora.


Orçamento secreto


“Ah, o PT encaminhou a favor do projeto de resolução que muda as regras do chamado “orçamento secreto” para tentar convencer o Supremo… Pois é. Lula e o futuro governo não dependem da adesão de Lira em favor da PEC por uma questão de gosto, mas de necessidade. Nos bastidores, o jogo é ainda mais duro, como já sabe toda gente. O deputado nega, mas ele quer também, para um dos seus, um assento na Esplanada dos Ministérios, o apoio à sua reeleição para a Câmara, a manutenção da bolada das “emendas do relator”, ainda que redistribuída. E, se deixarem, cobrará também “amor verdadeiro”, para lembrar Nelson Rodrigues.

Então vamos ver… Lula tenta os R$ 145 bilhões. Mercado especula contra. Vêm os valentes do PL — quantos serviços prestados à pátria Valdemar pode elencar! — para defender apenas um ano. Aí os gênios especulam a favor do que chamam “responsabilidade fiscal”. Mas calma! Falta o destacamento dos Santos Moralistas dos Últimos Dias. Cobram que o eleito saia quebrando lanças contra as emendas do relator, o que, por óbvio, inviabilizaria a aprovação da PEC, para gáudio dos responsáveis…

Ter-se-ia, então, como fruto da aliança entre os moralistas (e eu também acho o volume das emendas do relator um escândalo) e a tropa da severidade fiscal um governo natimorto, não é? No fim das contas, o que se pede, sem que se nomeie a coisa, é que Lula, que venceu as eleições, governo como um derrotado. E suspeito que a primeira reação “Duzmercáduz” seria positiva. Ou já se anteciparia e pôr preço no, sei lá, caos social talvez… Afinal, caberia ao eleito administrar a Saúde quebrada, a Educação quebrada, o Meio Ambiente quebrado, a Polícia Federal quebrada, o Minha Casa Minha Vida quebrado…

No fim das contas, boa parte dessa crítica que se quer independente se adaptou muito bem ao desgoverno Bolsonaro, que incorria numa inconveniência ou outra ao pregar golpe de estado e ao estimular atos que evoluíram para o terrorismo… Tudo normalizado.


Um ano?


A pregação da quase totalidade da imprensa contra a PEC encontrou eco no Congresso, não? Lá estão os fanáticos de Bolsonaro, os patriotas de Valdemar, os fiéis do Republicanos. Viraram verdadeiros guias morais dessa gente empenhada em manter a responsabilidade das contas públicas… E aí se comemora: “Podem ser R$ 145 bilhões agora, mas só por um ano…”

Por um ano? Em 2023, o Congresso é outro. Quando chegar abril, o governo já precisa começar a encaminhar o Orçamento de 2024. E, salvo melhor juízo, o teor de chantagem vai aumentar em vez de diminuir. Em seis meses, será preciso fazer aquilo que Guedes e Bolsonaro não fizeram: apresentar um âncora fiscal. Vejam que coisa corriqueira: arrumar ao menos R$ 145 bilhões — afinal, não vai chover dinheiro — e apresentar a nova âncora, negociando com o Centrão e enfrentando a sabotagem golpista.


Todo poder


Creio que o Supremo acabará criando uma disciplina para as “emendas do relator” para lhes garantir a transparência possível, com algumas outras exigências além do projeto de resolução aprovado. Entendo o bode dos coleguinhas com a RP9, mas, de fato, não creio que caiba ao tribunal entrar em minudências orçamentárias. O troço que está aí, infelizmente, saiu também das urnas.

“Ah, mas assim se mantém Arthur Lira empoderado…” Fato. Ocorre que o tribunal poderia, no limite — há cinco votos nesse sentido — apontar a inconstitucionalidade da RP9 como existe, limitando-a à correção de erros e omissões, e nada impediria que o dinheiro fosse redistribuído entre outras rubricas. O mal menor pode ser a criação de critérios — até que não mude o equilíbrio de forças no Congresso. Se não forem cumpridos a contento, sempre se pode recorrer com uma Reclamação para que o tribunal faça valer a sua decisão.

O que empodera Lira e, de saída, busca quebrar as pernas do presidente eleito, tentando inviabilizar o futuro governo, é cassar de Lula o direito de encetar políticas públicas que tirem o país do abismo. E não se faz isso sem recursos. O surto de suposto fiscalismo — porque nada há de fiscalista no doidivanas que ignora os números em nome de uma posição de princípio — está consagrando, ele sim, o poder do Centrão.

Pior: a pregação golpista não parou nem vai parar. Ao se tentar atar as mãos do futuro presidente, condenando-a gerente do caos bolsonarista, estabelece-se uma aliança objetiva entre imprensa e golpismo. “Aliança objetiva” é conceito político. Dispensa as afinidades subjetivas. Ter asco de golpistas é fácil porque são manifestamente asquerosos. O difícil é não colaborar com o meio de cultura em que esses patógenos se criam.

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