Historiador critica a realização de megaeventos fechados e a “privatização” da festa enquanto carnaval de rua e desfiles de escolas de samba estão oficialmente impedidos de ocorrer. O Diário de Viamão reproduz a entrevista com Luiz Simas, publicada pela Agência Pública
Luiz Antonio Simas é referência quando o assunto é carnaval e manifestações da cultura popular brasileira. O historiador, professor e compositor carioca duas vezes ganhador do aclamado prêmio Jabuti, tem sido uma voz crítica à realização de grandes eventos privados de carnaval enquanto a festa pública está impedida de tomar as ruas e as escolas de samba tiveram seus desfiles adiados por conta pandemia no Rio de Janeiro e em São Paulo.
“Acho que se justificaria um adiamento por conta da saúde pública, a minha questão não é essa”, explica Simas. “Mas é esquisito, porque definitivamente não é a questão da saúde pública que determinou [o adiamento]. Isso guarda uma percepção da sociedade que é preconceituosa em relação ao carnaval.”
Ele afirma que a festa já sofria um processo de “privatização” e “domesticação” por parte do mercado mesmo antes da Covid-19. Por isso, para além dos prejuízos econômicos aos trabalhadores do carnaval em mais um ano, destaca outras consequências do banimento dos festejos públicos. “Quando você tira o carnaval de rua de cena nesse contexto, há um esvaziamento simbólico da própria rua como instância de construção da vida na cidade”, aponta. “Uma grande disputa que envolve a cidade passa pela rua. O que a gente quer: encarar a cidade a partir da lógica da circulação de mercadoria, de corpos apressados que se deslocam para o trabalho, ou entender a cidade como ponto de encontro?”.
Em entrevista à Agência Pública, o historiador fala ainda sobre conceitos centrais em sua obra, como a luta pelo encantamento do mundo e as ideias de Brasil e brasilidade, segundo as quais as culturas populares vão se constituindo em frestas no muro entendido como o projeto oficial de país, marcado pelo colonialismo. Nesse sentido, Simas defende que o espaço de produção cultural brasileiro é uma “encruzilhada”. “Encruzilhada é estar disponível para a alteridade, para conviver com o outro, com outras referências, porque ela te apresenta caminhos diversos”, aponta”. “Somos um país encruzilhado por saberes ameríndios, múltiplos saberes africanos, inúmeras referências de imigrantes pobres europeus que chegaram aqui.”
Você tem sido uma voz crítica ao cancelamento do carnaval de rua diante da manutenção de outros grandes eventos privados em todo o país. Por que essa situação não pode ser lida apenas pelo ângulo da saúde pública?
Na verdade, não sou contra o adiamento. O que me surpreende é que ele não se justifica pela questão sanitária, por tudo que a gente tem visto. Houve o adiamento dos desfiles e o cancelamento de carnaval de rua ao mesmo tempo em que diversos outros eventos muito grandes foram mantidos. Tive contato com a programação de carnaval que vai acontecer no Rio de Janeiro e tem muita coisa: festa privada, baile, show, megaevento com artistas de várias tendências musicais. Fica uma coisa estranha, né? Acho que se justificaria um adiamento por conta da saúde pública, a minha questão não é essa, não sou daqueles que chegam e dizem “ó, tem que ter de qualquer maneira”. Mas é esquisito porque definitivamente não é a questão da saúde pública que o determinou [o adiamento]. Isso guarda uma percepção da sociedade que é preconceituosa em relação ao carnaval, não tenho dúvida.
E também reforça a desigualdade.
A rigor, há um processo de privatização do carnaval. Na prática, tivemos um ataque contra o carnaval público que gerou o fortalecimento do carnaval privado. Se você tiver dinheiro para pagar, vai entrar em algum megaevento, um grande show ou alguma coisa nesse sentido com artistas e blocos. Ótimo, é legítimo, até porque existe uma economia criativa importante [ligada às festas]. Os músicos, técnicos de som e trabalhadores da cultura precisam sobreviver. Não estou dizendo que a gente tem que cancelar tudo, só estou dizendo, da minha posição – eu, que não sou cientista, obviamente –, que o discurso de que a justificativa do adiamento se fundamenta numa questão sanitária não é procedente por tudo que a gente tem visto. Nós vamos ter carnaval em certo sentido, só não vai ter a festa pública.
Quais as consequências do cancelamento do carnaval de rua e dos desfiles de escolas de samba para os trabalhadores da festa?
Só aprofunda uma crise que começou a se desenhar na pandemia. Há uma parte da sociedade brasileira que parece ter horror do Brasil, que tem uma percepção da festa como vagabundagem, elemento de alienação. Isso mistura preconceito, uma certa ética do trabalho muito problemática e uma absoluta falta de percepção de que a festa é um processo de construção coletiva de pertencimento da vida. A gente vive em um mundo pós-industrial em que as esferas coletivas são cada vez mais atacadas em nome de um individualismo total, de uma mercantilização brutal da vida em todos os seus setores. Essas celebrações de rua são momentos de reconstrução da ideia coletiva da vida, mas há um preconceito brutal. As pessoas esquecem que a economia criativa da festa sustenta muita gente não só durante a festa: numa escola de samba, tem a costureira, o ferreiro, o escultor, o figurinista, o funcionário da quadra da escola, o camarada que trabalha com a metalurgia dos carros alegóricos. No carnaval de rua, você tem lá o técnico de som, o vendedor ambulante. Esses trabalhadores foram absolutamente deixados à míngua, é um absurdo o que está acontecendo.
Para além das consequências econômicas, que outros vazios – culturais, simbólicos – a falta de festa de carnaval deixa para nós, brasileiros?
Esse é um problema gravíssimo. Acho importante ressaltar uma coisa: o carnaval de rua de certa maneira já vinha sob ataque. Primeiro, ele é atacado por uma lógica de mercantilização do mundo, da cidade. Vem sofrendo, por exemplo, com uma tentativa de domesticação do mercado sobre ele. Você tem mega blocos no Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte – a gente pode pensar em outros estados – que foram domesticados pelo propósito de patrocínio. Tem grandes marcas de cerveja que patrocinam os blocos de rua, há essa dependência e isso é um negócio problemático. O carnaval de rua também vem sendo atacado do ponto de vista de um discurso de ordem moral muito ligado a algumas designações neopentecostais. Existem obviamente designações que respeitam a festa e dialogam, mas há outras que operam na lógica da demonização. Tem um discurso de ordem pública que já é um pouco complicado também e que o tempo todo tenta domesticar a rua. Quando você tira o carnaval de rua de cena nesse contexto, há um esvaziamento simbólico da própria rua como instância de construção da vida na cidade. Uma grande disputa que envolve a cidade passa pela rua. O que a gente quer: encarar a cidade a partir da lógica da circulação de mercadoria, de corpos apressados que se deslocam para o trabalho, ou entender a cidade como ponto de encontro? Essa é uma dimensão muito séria. A rua sempre despertou paixões, receios, medos, representou desafios, por tudo que ela tem de beleza e, ao mesmo tempo, de tensão e inesperado. O que está acontecendo é um esvaziamento da rua como ponto de construção de sociabilidade em nome de uma rua domesticada a partir da lógica da cidade como espaço visto prioritariamente sob a lógica do capital.
Como explicar a diferença entre a festa de carnaval pública e privada?
Passa por uma diferença entre dois conceitos que tenho elaborado para pensar a cidade: cultura do evento e evento da cultura. Parece só um jogo de palavras, mas não é. A cultura do evento é desprovida de vivência, de um sentido mais orgânico. Quando você vai a uma festa privada dessas – e não vou ser moralista, dizer “não vá” –, é um exemplo do que chamo de cultura do evento, o negócio é fazer o evento e dane-se tudo, mas é vazio, não tem organicidade, é fugidio, um simulacro. O carnaval de rua é um evento da cultura, uma coisa completamente diferente. É um evento fundamentado em tradição, em história, em vivência, em cultura e portanto numa experiência realmente vital. É mais ou menos como uma escola de samba: a gente não pode pensá-la exclusivamente a partir do desfile, que é fundamental. A escola de samba não existe porque vai desfilar, ela só vai desfilar porque existe. Me parece que somos cada vez mais acuados pela cultura do evento, que é rasa, vazia, circunstancial e mensurada pelo interesse do mercado. Quando falo em mercado, também não sou bobo, sei que existe uma economia criativa, e é legítimo que ocorra. Me refiro a quando o interesse do capital está sobreposto a qualquer outro. É uma festa, uma brincadeira, mas é muito sério, porque a gente está falando de construção de país, de cidade, de rua, de sentido de mundo. E essa dimensão parece que muita gente não tem.
Em sua obra, você tem desenvolvido a diferença entre os conceitos de Brasil e brasilidade. Poderia explicar, por favor?
Quando falo em Brasil, me refiro a um projeto oficial, institucional. Há alguns anos escrevi um texto – inclusive, muita gente ficou impressionada com ele, e quem não leu falou que eu estava ficando maluco – em que defendi uma ideia, que continuo defendendo, mas quando defendi lá atrás causou um certo estranhamento. Eu dizia que o Brasil deu certo. Digo isso porque institucionalmente, com exceções que confirmam a regra, o Brasil é projetado como Estado-nação para excluir. A exclusão, a desigualdade social e as estruturas do racismo são um projeto de Estado bem-sucedido. Isso é projetado, está na colônia, no Império, que aprova uma lei de terras para inviabilizar a distribuição da propriedade. O Brasil fica independente em 1822 e de forma aterrorizante preserva a escravidão. A República brasileira não foi proclamada com o intento de propor um projeto de inclusão, ela monta mecanismos de exclusão social dos pobres e descendentes de escravizados. O Brasil institucional é um projeto bem-sucedido de horror. Ao mesmo tempo, nas frestas desse projeto, foram sendo construídos sentidos de vida transgressores. E aí penso muito mesmo na cultura brasileira, penso muito, evidentemente, em relação ao samba – porque estudei muito a história do samba, gosto muito de samba. O que faz o Estado? Ou reprime, ou tenta de alguma maneira domesticar, tirar dessas manifestações seu potencial mais transgressor. A brasilidade é esse caldo de cultura expresso nas danças, na corporeidade brasileira, na sonoridade dos tambores, nas instâncias coletivas dos reinados, congadas, maracatus, bailes funk, rimas de rap, emboladas dos cantadores nordestinos, ginga dos capoeiristas, nas nossas maneiras de jogar futebol. Essa brasilidade vai sendo construída, numa dimensão transgressora, nas brechas, nas frestas e nas rachaduras do Brasil oficial, esse projeto de horror absoluto. E me parece que existe uma tensão constante entre o Brasil e a brasilidade: às vezes o Brasil Estado oficial contempla a brasilidade, não é uma relação dicotômica como se fosse isso aquilo lá, tem nuances nesse processo. Aí costumo dizer o seguinte: só o que pode nos salvar do Brasil é a brasilidade.
Em que momentos da nossa história essa aproximação ocorreu?
A Era Vargas teve um projeto de Estado que dialogava com essa brasilidade e a reconhecia como um elemento talvez definidor do que somos, mas numa dimensão controladora, domesticadora e que em alguma medida foi muito folclorizante. Penso essa brasilidade também muito a partir da ideia do jogo, porque não sou eu que vou dizer como a brasilidade vai lidar com o Brasil: os agentes da brasilidade constroem organicamente seus modos de interação. Eu, como historiador, vejo e sinto isso. Vivo numa cidade profundamente desigual, extremamente violenta, que tentou construir um mito de cordialidade que não se sustenta diante da análise histórica. Não sou um adepto do carioquismo como uma alternativa fabulosa de vida, estou longe disso, mas o que me impressiona é como, diante de um muro de horror, você foi construindo sentidos de vida muito poderosos nas brechas, nas rachaduras. Por exemplo, gostei muito da gestão do Gil quando foi ministro da Cultura, criando pontos de cultura. Ali se tentou pensar uma dinâmica pública para a cultura e reconhecer o protagonismo dos agentes dessa mesma cultura. Hoje, vivemos um momento terrível do ponto de vista das políticas públicas de cultura, porque não é nem uma tentativa de domesticar, é realmente um Brasil que tem horror da brasilidade, que quer que ela morra, suma. Mas acho que a solução passa pelo protagonismo dos próprios agentes de cultura, dos agentes de território. A ideia de que alguém possa chegar levando cultura a algum lugar me apavora, porque os lugares são incessantes produtores de cultura. Acredito muito também em práticas cotidianas, não sou o sujeito que acredita em lances espetaculares, em megainiciativas, o que me impressiona mesmo é como cotidianamente você vai construindo sentido de vida muito fortes que vêm de periferias, subúrbios, favelas, florestas. Não acredito minimamente em nenhuma solução que venha do Brasil confortável em seus salões, no ar condicionado. Acho que a reinvenção do Brasil, sua refundação, a transgressão necessária virá das margens do Brasil oficial.
Essa ideia de fissurar o grande muro do colonialismo.
Sim. Essa ideia, que gosto muito de trabalhar, das culturas de fresta. Na minha obra, penso o Brasil institucional como um muro, um concreto de profunda dureza. Mas esse muro sempre vai ter suas rachaduras, e nelas você vai entrando, vai construindo a vida, às vezes resistindo, às vezes dando porrada, às vezes negociando, com nuances o tempo todo.
Acredita que esse muro pode ser derrubado?
Não sei. Acho que a gente vive uma lógica parecida com a do jogo da capoeira. O mestre Pastinha dizia isso: o capoeirista não vai aniquilar o outro. Até porque, se ele aniquila o outro, o jogo acaba. Acho que o jogo vai continuar, a questão é jogar. O historiador é péssimo para prever o que vai acontecer, não faço ideia, mas o que verifico é que a nossa história é muito marcada por construção de sentido, por construção transgressora de beleza nessas brechas a partir de uma certa sabedoria gerada até pela própria ideia da escassez. O Milton Santos, grande geógrafo, falava muito disso, como diante da escassez você tem que inventar o mundo. Isso não significa romantizar o precário. A romantização do precário é uma das coisas que mais me atormentam em certos setores, inclusive, progressistas. Não é para romantizar o precário, mas para entender que você está construindo sentido de vida ali, que essas construções têm uma possibilidade, que cotidianamente vai se estruturando, de transgredir. Óbvio que não desejo que a gente fique o tempo todo construindo coisas das frestas, o objetivo tem que ser botar o muro abaixo. Mas acho que o muro começa a ruir exatamente pelas rachaduras. Não acredito que a gente vá chegar com uma picareta, com uma escavadeira e derrubar o muro de uma hora para outra.
Você defende que o Brasil é um país de “encruzilhadas”. O que isso significa?
Encruzilhada não é um espaço de quem está perdido – as pessoas confundem muito encruzilhada com labirinto. Encruzilhada é estar disponível para a alteridade, para conviver com o outro, com outras referências, porque ela te apresenta caminhos diversos. Você, na encruzilhada, não está numa linha reta, está num espaço em que tem uma saída para cá, uma saída para lá, uma para frente. O espaço da produção da cultura é um espaço da encruzilhada, que te coloca em desconforto porque necessariamente você tem que conviver com a alteridade. Somos um país encruzilhado por saberes ameríndios, múltiplos saberes africanos, inúmeras referências de imigrantes pobres europeus que chegaram aqui. Somos um país encruzilhado por diversas sonoridades e sabores.
Há relações entre a sua obra e as discussões sobre decolonialidade?
Tenho medo também de virar um colonizado pela decolonialidade. Gosto muito de alguns autores que trabalham com a decolonialidade, ou a descolonização, acho uma questão importante. A maneira como vejo o combate às estruturas da colonização, que você pode chamar de decolonialidade, não é um conceito que uso, por exemplo, no meu trabalho. A luta contra a colonialidade, a meu ver, não é para extirpá-la, destruí-la, porque isso não vai acontecer. Mas de certa maneira é uma luta para trazer essa herança colonial para o jogo. Não sou o sujeito que vai chegar e dizer “o Descartes é um pensador da racionalidade europeia e não quero saber dele”. Gosto do Descartes, não estou afim de desprezá-lo, não desprezo cultura. O que quero é trazer o Descartes para o jogo, para a ginga, para a dimensão do encanto, e tentar entender o que a gente pode estabelecer a partir de um hipotético encontro entre Descartes e o Caboclo Arranca Toco. Não estou afim, por exemplo, de dizer que a música do Sebastian Bach passa pelas codificações da música tonal européia, do modelo clássico, e por isso não quero saber, quero saber, evidentemente, porque sei que Bach se relaciona com Pixinguinha. Sei que Pixinguinha é o tambor da macumba, é o jazz norte-americano, mas sei também que é o Johann Sebastian Bach – o Pixinguinha acaba sendo ele mesmo e todo o resto. Às vezes, há uma ânsia de marco zero que me preocupa um pouco. É como se nada prestasse ou funcionasse, e a gente precisa construir do zero – não é assim. Acho que a gente está metido numa circunstância em que necessariamente somos também feitos da colonialidade. Mas como podemos encantar isso, botar pimenta nesse processo colonial? Como o trazemos para o campo da rasura, da disputa, da ginga? Costumo dizer que não sou um pensador da decolonialidade, se tiver que me definir, sou fundamentalmente um pensador da macumba. Se você acha que a macumba pode estar inserida numa postura decolonial ou descolonial, não sou eu que estou dizendo, mas penso a partir da perspectiva macumbeira, do encanto, da polirritmia, da síncope, da corporeidade do transe.
Como define o “encantamento” das coisas, do corpo e do mundo, elemento tão central em sua obra?
Muita gente me pergunta se penso encantamento a partir do Weber, que trabalhou com a ideia do desencanto do mundo. Não, é a partir do tambor de mina, da encantaria maranhense, que conheci porque minha família teve um envolvimento com os guerreiros de encantaria. O encantado é aquele que dribla a morte e se coloca em disponibilidade para se alterar – esse é o fenômeno da encantaria. Para ele, não existe a dicotomia entre a vida e a morte, o que basicamente existe é a vida e a não vida, o encanto e o desencanto. Nesse sentido, uma pessoa que está viva, respirando, com batimentos cardíacos e pulsação, pode estar sendo acossada pela não vida, pode estar num estado de mortandade. Por outro lado, nessa perspectiva, alguém que de repente já morreu há 350 anos pode estar vivíssimo, baixando como caboclo num terreiro. A gente vive em um mundo que desencanta o tempo inteiro, que domestica os corpos e os disciplina na lógica produtiva do tempo do trabalho. Quando falo, por exemplo, do transe, não o penso do ponto de vista da religião, mas em uma dimensão de transitar para um outro lugar, você se colocar em disponibilidade para o canto, para a festa, para a alegria, para a transgressão daquela condição miserável de domesticação do corpo como uma máquina de produção incessante de mercadoria. Quando falo em terreiro, é um espaço praticado na dimensão do encantamento do mundo.
Como esse processo de “terreirização” se dá na prática?
A praça que tem em frente à minha casa pode ser terreirizada por uma criança que joga amarelinha, por um grupo que chega com um cavaquinho e um tantan e começa a fazer uma roda de samba. O viaduto de Madureira é um território funcional horroroso da cidade do Rio de Janeiro, construído para ligar um lado ao outro do bairro pelo carro. Mas debaixo dele as pessoas começaram a perceber que havia espaço para fazer um baile, uma roda de jongo. Você terreirizou aquilo, praticou aquilo na dimensão do encantamento do mundo. Quando a gente fala da macumba, portanto, é no sentido de que constrói essa possibilidade de encantamento do mundo diante de experiências constantes de desencanto, a partir da ideia de que os corpos, os espaços, o chão podem ser praticados numa dimensão diferente, e que não somos – não precisamos ser ou não deveríamos ser – máquinas adequadas a uma lógica miserável de submissão à mercadoria. A luta pelo encantamento do mundo também é – e essa dimensão política é fundamental – a luta contra a preponderância do capital. Não adianta despolitizar essa luta, não adianta achar que vou me encantar se eu trabalhar que nem um miserável e tirar meia hora do meu dia, por exemplo, para meditar ou botar uma música e começar a dançar. A luta pelo encantamento do mundo tem que ser dimensionada politicamente a partir de um combate feroz à mercantilização absoluta da vida, das cidades e dos corpos promovida pela lógica do capital.
Crises complexas que temos atravessado enquanto país e humanidade, como a da Covid-19 e a climática, nos provam que não existem soluções individuais ou elitizadas: ou a saída é coletiva, ou simplesmente não é. O que saberes não ocidentais historicamente marginalizados podem nos ensinar sobre isso? E como beber nessa fonte em tempos de negacionismo científico?
Saídas individuais são apenas para, no máximo, aplacar nossa consciência. Claro que acho que individualmente podemos fazer coisas, mas não tenho a menor dúvida de que precisamos nos pensar como coletividade, que não faz sentido a nossa vida sem a coletividade. E aí, novamente, acho que a gente tem que mergulhar em algumas sabedorias não brancas vindas das florestas, das praias diversas etc, que pensam a dimensão coletiva da vida. É entender que esses saberes não operam na negação da ciência, muitas vezes operam numa complementaridade em relação a ela. Acredito fielmente na ciência da botânica, na herança de uma botânica europeia, acho fundamental, não nego, e percebo que essa botânica pode dialogar profundamente com o conhecimento das folhas trazido pelas sabedorias ancestrais indígenas e por Ossain, o orixá das folhas. Essa é a encruzilhada fundamental para a gente.
Chegamos ao quarto ano de governo Bolsonaro. Pode-se dizer que ele é um representante tradicional do projeto colonial, como outros governantes que o Brasil já teve, ou tem algo de diferente nesse sentido?
Chegamos ao extremo do horror, ao extremo do pus. Não tenho dúvidas de que o horror é a dimensão do genocídio, do extermínio, de um Brasil misógino, homofóbico, extremamente violento, boçal, que vem lá dos bandeirantes, o Brasil dos feitores, visto do alpendre da casa grande. Esse Brasil está aí o tempo inteiro, às vezes mais ou menos exposto. Me parece que Bolsonaro é uma experiência de horror inédita na história republicana porque traz toda a carga horrorosa do colonialismo brasileiro, mas temperada pelos totalitarismos mais medonhos de extrema direita da história contemporânea. Isso é muito temperado pelos fascismos, pelo nazismo, por uma política genocida fundamentada em doutrinas de supremacia racial. Bolsonaro consegue ser um caldeirão de horrores impactante. Imagine o que é misturar a violência do processo colonial do Brasil, o extremismo de direita do nazismo, o extremismo supremacista daquela direita medonha norte-americana, os radicalismos de extrema direita do leste europeu – ele consegue misturar tudo, é um sarapatel de horrores. Às vezes você tem a colonialidade que se manifesta com o mínimo de civilidade, mas essa é uma experiência sem o mínimo de civilidade, é simplesmente uma experiência de horror.
As eleições deste ano representam a chance de nos contrapormos a esse projeto colonial e totalitário de Brasil?
Essa eleição é até certo ponto atípica na história do Brasil porque é marcada pela urgência absoluta de derrotar o fascismo, ou pelo menos tentar derrotá-lo eleitoralmente. Minha impressão é que há uma chance efetiva do Bolsonaro perder a eleição, mas isso não vai significar a derrota do bolsonarismo. São etapas e várias frentes de luta: a luta tem que estar na rua, no cotidiano, nas instâncias coletivas. A luta passa por uma etapa eleitoral evidentemente, não só na eleição presidencial, mas na do Congresso, que vai ter importância tão grande quanto. Mas o que acho fundamental entender é que não é o processo eleitoral que derrotará o fascismo, o bolsonarismo. Podemos derrotar o Bolsonaro, o que já seria fundamental, mas a luta contra o extremismo fascista, a política genocida e supremacista que o bolsonarismo de certa forma catalisou é um processo que vai continuar e que vai exigir do Brasil um tempo longo até que a gente, quem sabe, consiga superar esse tipo de coisa.
É possível dizer que os governos do ex-presidente Lula – até o momento o grande adversário de Bolsonaro nas urnas – representaram, em certa medida, a aproximação entre brasilidade e Brasil oficial?
Não fui um dos mais entusiasmados eleitores do Lula e nem me defino exatamente como lulista. Ressaltando todos os problemas dos seus governos, porque houve problemas – também não vamos dourar a pílula, tem Belo Monte, tem o que aconteceu em relação às Olimpíadas e Copa do Mundo, o que ocorreu com certos movimentos sociais que sofreram com esse processo –, na circunstância em que estamos, acho que a candidatura do Lula é a mais viável para derrotar o bolsonarismo. E há diálogo, a gente tem condições, por exemplo, de criticar esse ponto ou aquele do governo do Lula, dizer que errou ali, que aquilo poderia ter sido diferente. Com o bolsonarismo não há a mínima possibilidade de diálogo, porque você não dialoga com nazismo ou o fascismo, isso a história prova. Vejo a candidatura do Lula, nessa circunstância atual, como importante para derrotar o bolsonarismo e começar a tentar remover o entulho. O próximo governo vai penar. Não acredito em milagre, não espero de um possível governo Lula, quem sabe, que ele contemple todos os meus desejos. Neste momento, meu desejo é tirar o Bolsonaro, mas a remoção do entulho vai ser custosa.