A morte como um tabu é uma característica comum na nossa sociedade. Não sei se precisa ser assim ou se acreditei, durante boa parte da minha vida, que não se deveria falar desse momento e que quanto menos falássemos mais distante ele estaria. Minha mãe, uma mulher enérgica, decidida, que não tinha medo de nada, nem de baratas, receava a morte e não falava sobre ela a não ser quando as filhas a perturbavam muito. Nesses momentos ela nos lembrava que apenas iríamos dar valor a ela quando estivesse morta. Dizia isso e rapidamente voltava atrás para afirmar que não precisava morrer para ter
algum tipo de reconhecimento. Preferia a ingratidão bem viva, do que as lágrimas depois de morta.
Minha mãe morreu aos 83 anos, depois de passar 40 dias na cama de um hospital em consequência de um AVC, semiconsciente, muito distante da mulher enérgica, autoritária e corajosa que sempre foi. Morreu fragilizada, sem ter consciência de que estava morrendo. Seus últimos dias, talvez 15 deles, ocorreram na UTI, em coma induzido, sendo mantida viva por um monte de aparelhos barulhentos que bombeavam substâncias e oxigênio para dentro de seu corpo inerte e já desfigurado. Se pudesse escolher, acredito que minha mãe não desejaria morrer dessa forma. Fatalista e orgulhosa de sua autonomia, ia preferir um infarto enquanto assistia à sua novela predileta ou enquanto preparava o almoço. Seria indolor, sem sofrimento e não a faria frágil, coisa que nunca foi e sequer admitia.
A lembrança da minha mãe e de seus últimos dias me veio à tona ao ler sobre a morte da atriz Léa Garcia, durante o Festival de Cinema de Gramado – onde seria homenageada com mais um prêmio – e sobre os comentários que acompanharam a notícia nas redes sociais. Muitos desses comentários (quase todos) lamentavam a perda, lamentavam a morte daquela mulher de 90 anos, cheia de energia, que circulava pelo festival como uma criança se divertindo em um parque de diversões e dizendo amar o cheiro de chocolate que sentia no ar. Não pude deixar de pensar que, aos 90 anos, morrer de forma rápida, sem dor, sem sofrimento, sem falsas expectativas de uma vida debilitada, que nada mais seria do que um adiamento da morte, é um privilégio.
Perguntei-me ao saber da morte da Léa Garcia que vida teria uma mulher como ela se, em vez de um infarto, tivesse tido um AVC e fosse obrigada a passar os últimos dias de vida como minha mãe, em uma UTI fria, sem ouvir suas músicas, sem assistir às suas novelas, sem conversar com as pessoas que amava, sem ir ao supermercado, sem preparar a própria comida, sem ser capaz de tomar seu próprio banho sozinha e sem, talvez, sequer se lembrar do quanto sua vida havia sido feliz e cheia de significados. Agora mesmo enquanto escrevo esse texto, um amigo vive a angústia de passar pela dor de não saber se a vida que sustenta seu pai a uma cama de hospital, aos 85 anos, é apenas o adiamento da morte, o fim de um ciclo ao qual nos agarramos todos porque não conseguirmos olhar com honestidade para a nossa finitude.
Seria a morte uma “quimera” como defendia Platão? Ou seria a simples dissolução das partículas elementares que nos constituem e que se dissolvem na natureza e no universo, como acreditava Epicuro? A escritora Lya Luft, em artigo publicado na Revista Veja, em 2015, diz que a morte é parte da vida que
flui e, de forma leve, suave e coerente – como era seu jeito de dizer – nos lembra que podemos ou não aceitar ou resistir à ideia da morte sem nunca, no entanto, podermos prescindir dela. É preciso compreender a morte como parte do ciclo da vida. As pessoas, diz Lya Luft, crescem, umas morrem muito cedo, outras ficam bem velhinhas, umas morrem por acidente, ou doença, ou simplesmente como uma vela que se apaga.
Talvez, num futuro próximo, sejamos capazes de driblar a morte, mas desconfio que isso não será possível a todos e não ocorrerá da mesma forma para todos. Há pouco tempo escrevi um texto, “Sobre envelhecimento e promessas de imortalidade”, que pode ser lido clicando aqui, em que perguntava o que iremos fazer de nossas vidas velhas, caso consigamos a proeza de vivermos eternamente.
Haveria tempo suficiente na eternidade para que pudéssemos integrar a morte à vida? Como no poema de Pablo Neruda, a grande questão talvez seja perguntar quando tempo vive o homem (entendido genericamente como ser humano) e o que significa viver para sempre.
Quanto vive o homem, por fim?
Vive mil anos ou um só?
Vive uma semana ou vários séculos?
Por quanto tempo morre o homem?
O que dizer sempre?
* A atriz Léa Garcia morreu na madrugada do dia 15 de agosto, em Gramado, durante a realização do Festival de Cinema de Gramado, onde ela receberia o Troféu Oscarito ao lado de Laura Cardoso.