Gosto de podcasts. Gosto especialmente de ouvir de manhã, enquanto organizo as coisas na cozinha e preparo a primeira refeição do dia. Hoje, havia alguma louça deixada na noite anterior, panos de prato para colocar de molho em alvejante, talheres aguardando no secador para serem levados à gaveta.
Ouvir podcast de manhã se tornou um ritual, assim como preparar o café e os ovos mexidos com queijo. O gosto pelo podcast vem do meu gosto pelo rádio, minha escola de jornalismo.
Um dos meus podcasts preferidos é o Prelo, do escritor Tiago Novaes. Ele diz que o seu podcast é sobre literatura e escrita criativa, mas a verdade é que ele fala de qualquer coisa que possa conectar-se à literatura, aos livros e ao ofício de escritor. Ou, pelo menos, eu penso que é isso e é isso que me interessa.
Hoje, ele falou sobre inteligência artificial, deixando claro que não se trata de uma abordagem especializada, tampouco de alguém que se preocupa com tendências ou pretende falar sobre elas.
Enquanto derretia manteiga na frigideira e a água para o café já começava a aquecer, a simples menção à inteligência artificial e ao Chat GPT me fez prestar mais atenção. Assim como o escritor, não sou de analisar tendências, não acho que tenha competência ou conhecimento suficientes para tal empreitada. E, como ele diz, já tem muita gente fazendo isso. Para uma profissional da comunicação, no entanto, confesso que tenho dedicado pouco tempo a esse assunto. Na medida da razoabilidade, tenho acompanhado, tenho me preocupado, tenho ignorado, tenho especulado silenciosamente ou
de forma enviesada em conversas com colegas de profissão.
A questão que Tiago Novaes levanta é aparentemente simples e não se vincula, nem de longe, às opiniões que demonizam a tecnologia, às que se agarram à ideia nostálgica de um passado melhor ou às que tomam os avanços tecnológicos de forma celebratória. Ele propõe uma reflexão, entre outras coisas, sobre o que pode significar o uso da inteligência artificial na prática de escrever, na produção literária e, obviamente, na qualidade do que se produz pela máquina.
O escritor abre o podcast dizendo que vai discutir a nova série de 120 romances de Jorge Amado, que, como é de conhecimento de todos morreu há muitos anos. As obras foram produzidas por inteligência artificial, a partir das referências do escritor baiano, encontradas na internet e organizadas por uma inteligência artificial. O mesmo feito acontece com Clarice Lispector e Machado de Assis. A primeira reação foi de espanto: mas o que ele está dizendo?
Imediatamente, me lembrei de Orson Welles, que, em um programa de rádio, em 1938, interrompeu a programação musical para dar a notícia de que a Terra estava sendo invadida por seres extraterrestres. A “notícia” provocou pânico e marcou a história do rádio. Na verdade, era a dramatização de trecho do livro Guerra dos Mundos, de autoria de outro Welles, o inglês Herbert George, que ambientou a história em Londres e usou a linguagem jornalística como estratégia narrativa.
A notícia da invasão alienígena foi narrada por Welles, o Orson, na 17ª edição do programa de adaptações radiofônicas, realizada no Radioteatro Mercury e transmitidas pela rádio CBS (Columbia Broadcasting System). O programa, veiculado no dia 30 de outubro, véspera de Halloween, narrava a invasão à cidade de Grover’s Mill, no estado de Nova Jersey. No dia seguinte, o jornal Daily News estampava a manchete: Guerra falsa no rádio espalha terror nos Estados Unidos.
Voltando ao podcast do Tiago Novaes, que me motivou a escrever esse texto, percebo que faço o que o Chat GPT se propõe a fazer. Diante de uma provocação – no caso, feita por mim a mim mesma – lanço perguntas ao Google e, a partir das respostas, faço o que minha inteligência natural é capaz: leio, seleciono, recorto, associo, descarto, agrupo, conecto, desconecto, escrevo, deleto e escrevo de novo até que um texto, finalmente, fique pronto e eu me dê por satisfeita. Levei pouco mais de uma hora para realizar todas essas operações e não ficar totalmente satisfeita.
Entre outras considerações, Tiago Novaes chama a atenção para a característica de anonimato do ChatGPT, um tipo de AI que busca, organiza e entrega um texto pronto, sem que se possa saber de onde vieram as informações. A inteligência artificial que nominamos GPT não é apenas um buscador. Ela é mais do que isso. Ela é capaz de produzir textos dos mais variados tipos, para os mais diferentes objetivos.
No meu caso, diante do resultado da busca sobre o livro Guerra dos Mundos e sobre o episódio que menciono, a responsabilidade da seleção foi minha. Optei pelas informações que estavam em sites que considero confiáveis. Acredito que essa seja a uma questão importante a ser pensada: ao aceitar que a IA me entregue um texto pronto, eu abro mão da possibilidade de selecionar.
A impessoalidade e a obscuridade das fontes – uma vez que o site coleta dados em diferentes lugares e já os entrega organizados no formato solicitado – nos leva a pensar que a mão humana ainda poderá ser um diferencial na produção de obras de literatura, por exemplo. O que devemos considerar, no entanto, é o modo como as IA aprendem a aprender e essa é uma ideia um tanto assustadora. O cinema não se cansa de nos apresentar, com os filmes de ficção, um futuro em que as máquinas começarão a ser programadas por outras máquinas e a humanidade, enfim, se tornará obsoleta.
Podemos pensar e acreditar que a IA não será capaz de desenvolver um estilo próprio na literatura, característica que leitores buscam, como destaca Novaes. Mas devemos dormir (e acordar) com a possibilidade de que ela poderá, sim, desenvolver um estilo próprio e que esse será incorporado pelos humanos.
Afinal, somos nós, os humanos, que deixamos rastros no ambiente digital para que um robô os capture e produza aquilo que acreditávamos ser os únicos capazes de fazer: criar, abstrair, subjetivar, inovar, sentir. Em um mundo no qual a máquina cria, será que não iremos nos acostumar a novos estilos de textos? E não seriam eles incorporados às nossas subjetividades, nos oferecendo novas lentes para entender a realidade?