Erika Goelzer | Qual o conceito de normalidade?

Seria a normalidade um conceito subjetivo? Certamente sim e certamente não. Existem diferentes normalidades, acredite. Dentro de determinadas culturas pode haver comportamentos e sentimentos que não são aceitos em outras. O que estou querendo dizer é que, muitas vezes, a normalidade depende de um contexto.

Normal e patológico podem ter a mesma natureza e diferir apenas em termos quantitativos. Vou explicar melhor: há dois anos, as pessoas que lavavam as mãos constantemente eram vistas de uma determinada forma enquanto que, atualmente, higienizar as mãos mais de 30 vezes por dia está completamente de acordo com o que estamos vivendo.

O ser humano tem uma tendência natural a classificar o mundo a sua volta. Tem a ver com a nossa natureza e com as formas que absorvemos a realidade. Adoramos criar regras e padrões para tudo, inclusive para os sentimentos e comportamentos alheios e, assim, patologizamos as diferentes formas de existir.

A patologização da normalidade,ou seja, a patologização das diferentes formas de existir é toda a forma de discurso produtora de regras sociais e normas de comportamento que são utilizadas para classificar, etiquetar , vigiar e, até mesmo, punir. Regras, regras e mais regras que determinam a forma como cada indivíduo deve viver, amar e, inclusive sofrer. Regras, que na maioria das vezes, não levam em conta a subjetividade e a dinâmica pulsional dos sujeitos.

As primeiras concepções psicanalíticas a cerca do binômio normal/anormal já entendiam que o limite entre um e outro é justamente uma linha tênue. A doença psíquica era entendida como uma ruptura do equilíbrio emocional, uma perturbação exagerada com relação à realidade.

A psiquiatria e a psicologia passaram a criar e utilizar manuais  para classificar, patologizar e medicalizar. Boris e Carneiro (2021), em uma conferência, apresentaram uma comunicação oral que, justamente, ilustra como um sentimento ou comportamento passa da esfera da normalidade para a da patologia. Eles estudaram as diferentes formas que o luto foi classificado no DSM, o mais famoso e mais utilizado manual diagnóstico e estatístico de transtorno mental.  Segundo eles, na primeira edição do DSM (1952) não havia qualquer referência ao termo “luto”. De lá para cá, o luto vem sendo citado como condição cultural, diagnóstico diferencial, critério de exclusão, condição concomitante ou agravante dos transtornos mentais.

A mudança mais recente, no DSM-5, retirou o luto dos critérios de exclusão para transtornos depressivos (afinal quem está em luto pode sentir uma tristeza que, apesar de profunda e avassaladora, seja completamente conectada com a realidade) tornando possível o diagnóstico de depressão em enlutados  e justificando sua consequente medicalização. A velha lógica de que um comprimido pode curar tudo.

Não sou contra a medicação quando ela é realmente necessária e jamais deixei de encaminhar um paciente grave para avaliação e consulta psiquiátrica. Minha crítica não é sobre o avanço da medicina e tudo de bom que alcançamos com ele. Minha crítica e com o comportamento humano que não tolera o diferente e que impõe a felicidade a qualquer custo.

A função de um manual de diagnóstico é ser usado como bússola, não como aprisionamento. A função da medicação é proporcionar o equilíbrio químico e alívio de sintomas, não o anestesiamento. Todo tratamento psíquico deve ter como objetivo possibilitar a melhor vida possível.

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