Reportagem de Gabriela Varella e Laura Kotscho, publicada pelo ICL Notícias, mostra que o trabalho em plataformas digitais está cada vez mais precário no Brasil. O Relatório Fairwork 2025, divulgado nesta terça-feira (23), avaliou dez das principais empresas do setor — 99, Ame Flash, iFood, Lalamove, Loggi, Parafuzo, Rappi, Uber, InDrive e Superprof — e concluiu que nenhuma delas cumpre os critérios mínimos de trabalho decente estabelecidos pela Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Entre os princípios avaliados estão remuneração justa, segurança e proteção contra riscos, contratos adequados que não isentem as empresas de responsabilidade, gestão transparente e a possibilidade de representação coletiva.
Segundo Julice Salvagni, professora de Políticas Públicas da UFRGS e uma das coordenadoras do estudo, a pesquisa confirma e aprofunda tendências apontadas em relatórios anteriores (2021–2023).
“É um cenário de condições de trabalho desesperadoras. Este ano, a situação do trabalho no Brasil está ainda pior”, afirmou.
Jornadas extenuantes e ganhos insuficientes
O levantamento ouviu 88 trabalhadores em 13 estados. Os relatos mostram jornadas de até 80 horas semanais com rendimentos líquidos de pouco mais de R$ 1 mil. É o caso de Bruno (nome fictício), entregador do iFood no Rio de Janeiro. Ele aluga uma bicicleta elétrica por R$ 90 semanais, gasta R$ 200 por mês com suplementos alimentares e, mesmo assim, vê sua renda mal cobrir os custos de trabalho.
Em caso de acidente, a proteção oferecida é insuficiente: “Se um cara quebrou a perna e ficou um ano fora, ele recebeu R$ 2 mil. Esse cálculo nunca é suficiente”, relatou Bruno.
O relatório destaca ainda um fenômeno inédito: plataformas que oferecem empréstimos financeiros próprios a seus trabalhadores. A Uber, por exemplo, atua com o Banco Digio; a 99, com o serviço 99 Empresta; o iFood, com o iFood Pago; e a InDrive, com o InDrive.Money. Para os pesquisadores, esse modelo cria um ciclo de endividamento e dependência.
“É um beco sem saída: a escolha por pegar o valor emprestado surge da falta de alternativa”, afirma o documento, que associa a prática a um “neocolonialismo digital”.
Multiplicidade de vínculos e assédio
Muitos trabalhadores atuam em duas ou mais plataformas simultaneamente, não por autonomia, mas por necessidade de aumentar os ganhos. Isso gera sobrecarga física e mental, agravada por mecanismos de gamificação que estimulam jornadas ainda mais longas.
Casos de assédio contra mulheres também foram identificados em número significativo, sem respostas eficazes por parte das empresas.
Outro alerta do estudo é a intensificação da pejotização após a reforma trabalhista de 2017. Hoje, grande parte dos trabalhadores atua como pessoa jurídica, sem direitos assegurados. O tema será objeto de audiência pública no STF em 6 de outubro, com repercussão geral para todos os casos na Justiça do Trabalho.
Para Salvagni, as plataformas poderiam garantir condições dignas, mas faltam vontade política e regulação: “É evidente que essas empresas teriam total condições de assegurar trabalho decente. Mas uma mudança efetiva só aconteceria por meio de uma regulamentação séria, e isso está muito longe de acontecer.”
O outro lado
As empresas mencionadas tiveram a oportunidade de se manifestar antes da divulgação do relatório.
A Parafuzo contestou a metodologia e afirmou que “97,5% dos profissionais recebem mais de R$ 18 líquidos por hora” em sua plataforma, com autonomia e cobertura por seguro de acidentes pessoais.
A Uber declarou que não participou do estudo por entender que ele parte de “premissas derivadas de modelos tradicionais de emprego”.
A 99 disse que a Fairwork não seguiu a metodologia prevista, alegando não ter sido contatada para entrevistas. A Fairwork rebateu com registro de convites enviados desde janeiro de 2025.