Mesmo após as enchentes históricas de maio de 2024 devastarem Porto Alegre, Cachoeirinha, Gravataí e outros municípios da Região Metropolitana, a Prefeitura de Porto Alegre segue autorizando a construção do loteamento Ecovillage, da empresa Ábaco Urbanizadora, na zona Norte da capital, próximo à fábrica da Coca-Cola, na Avenida Assis Brasil.
O empreendimento prevê o aterro de 36 hectares da várzea do Rio Gravataí, com o despejo de 9,4 milhões de metros cúbicos de entulho. Segundo especialistas, trata-se de uma intervenção de alto impacto em uma área vital para a contenção de cheias.
Em reportagem publicada pelo Sul21, a jornalista Bettina Gehm revelou que o Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS) investiga possíveis irregularidades no licenciamento ambiental concedido pela Smamus (Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade). A principal suspeita é de que houve fragmentação do processo de licenciamento: uma licença para o aterro de inertes e outra para o loteamento em si. Essa manobra poderia ter mascarado a inviabilidade da obra em um terreno classificado como área de preservação permanente.
O biólogo Paulo Brack (UFRGS), ouvido pela reportagem, explica que as várzeas funcionam como “esponjas naturais”, absorvendo o excesso de água do rio em períodos de chuva.
– Impermeabilizar essa área é como remover um órgão vital do corpo hidrológico da região metropolitana. Essas chuvas rapidamente vão se transformar em inundações – alerta.
As consequências já começam a aparecer. O vereador Leonardo da Costa (PT), do Coletivo Mato do Júlio, de Cachoeirinha, afirma que a água na ponte de Cachoeirinha subiu mais rápido durante as chuvas de junho de 2024, efeito que associa ao avanço das obras. Imagens de drone citadas pelo coletivo mostram que as áreas aterradas acumulam menos água, enquanto a várzea preservada ao redor fica alagada — um indício de que o fluxo hídrico está sendo deslocado em direção às áreas habitadas.
O alerta técnico da Metroplan
A denúncia ganhou respaldo técnico. Domingo, Leonardo da Costa divulgou em suas redes uma “Nota Técnica da Diretoria de Incentivo ao Desenvolvimento da Metroplan”, órgão vinculado ao governo do Estado. O documento integra os estudos do Plano Metropolitano de Contenção das Cheias e confirma que a área onde o Ecovillage está sendo construído foi planejada justamente para funcionar como bacia de inundação controlada, reduzindo riscos para bairros como o Sarandi (Porto Alegre) e cidades vizinhas, como Cachoeirinha e Canoas.
– Estão aterrando a várzea do Gravataí que fica entre dois diques, o do Sarandi, em Porto Alegre, e o de Cachoeirinha. É uma área planejada para inundar e não para receber casas. Essa obra vai afetar a vida de moradores de Cachoeirinha, Canoas, Porto Alegre e Gravataí – denunciou o parlamentar.
Em maio de 2024, chuvas intensas deixaram milhares de famílias desabrigadas na Região Metropolitana, com prejuízos reconhecidos oficialmente como calamidade pública. Só na Bacia do Gravataí, que abrange nove municípios e 1,3 milhão de habitantes, os danos foram devastadores.
Agora, especialistas alertam que prejuízos futuros podem chegar a R$ 885 milhões, caso novas inundações ocorram sem a proteção da várzea. Mais de 5,7 mil famílias estariam em situação de risco direto.
“O maior absurdo ambiental do Rio Grande do Sul”
O Coletivo Mato do Júlio denuncia que mais de 30% da área já foi aterrada, mesmo com a investigação em curso pelo Ministério Público. A Ábaco Urbanizadora não se manifestou publicamente até o momento.
Para o vereador Leonardo da Costa, trata-se do “maior absurdo ambiental do Rio Grande do Sul”. Já o professor Brack resume o veredito técnico: “Esse tipo de aterro não deveria ter sido permitido”.
Se nada for feito, os primeiros a sofrer poderão ser justamente os futuros moradores do Ecovillage — vítimas de um desastre que a própria obra ajudará a criar. Mais grave ainda: o impacto recairá sobre milhares de famílias da Região Metropolitana, que já experimentaram em 2024 o poder devastador das cheias.
Enquanto o MPRS investiga, a pergunta que resta é se haverá tempo para evitar que um projeto imobiliário se transforme em tragédia anunciada.