… Agora e na hora da nossa morte, amém”. Compartilhamos o artigo da escritora e jornalista Eliana Alves Cruz, publicado pelo ICL Notícias
“Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi”
(Pedaço de mim, de Chico Buarque)
Era noite na cidade paulista de Bauru, no último dia 17, quando Guilherme Alves Marques de Oliveira, jovem negro de 18 anos, morreu varado por balas de fuzil. Segundo o relato policial, numa troca de tiro com as forças de segurança. No dia seguinte, o corpo dentro de um caixão, estava sendo velado pela família e amigos, quando um carro da PM estacionou no local e, segundo os presentes, um dos oficiais afirmou: “O sistema venceu”. Os momentos seguintes provariam que a única vitória ali era a da morte. A morte de toda e qualquer noção de humanidade e civilidade.
Revoltados com a primeira provocação, um bate-boca e uma confusão se iniciaram até que viesse a segunda alfinetada: “Duvida eu entrar aí?” Chamando reforços, os policiais invadiram o velório de Guilherme, agrediram seu irmão e sua mãe. As imagens são estarrecedoras e aqui paramos.
Qualquer pessoa que algum dia enterrou um ser amado já sentiu esse rasgo de alma. No entanto, nós apenas imaginamos, só quem enterra um filho querido sabe o que é andar por aí como se tivesse que caminhar com metade do corpo necrosado.
É a palavra da família, dos amigos, da comunidade que afirma que o rapaz falecido era alguém não envolvido com o crime, contra a palavra de policiais que entraram distribuindo soco, pontapé e mata-leão (sim, o golpe proibido pela própria polícia) em um velório. Um protesto reprimido também com extremada violência policial tentou dar vasão a revolta pelo ocorrido na despedida de um rapaz que, afirmam, era alguém sem envolvimento com o crime, mas… e se fosse? Onde está escrita a autorização para “autoridades” esbofetearem os integrantes de um funeral?
Um cemitério nunca é um lugar exclusivo. Outras pessoas estão chorando, outras pessoas estão, no mínimo, passando a vida em revista enquanto olham um corpo conhecido que não mais respira. Despedidas, encerramentos, cerimônias de adeus para uns, até breve para outros. Luto. Lágrimas. Silêncio… Quando a polícia, paga pelos cidadãos e cidadãs, viola este momento para provar que o “sistema venceu” certa está a frase de Dilma Roussef que virou piada: Ninguém vai perder ou vai ganhar. Todo mundo vai perder.
Corpos como os de Guilherme não comovem porque os olhos estão turvos de ler e os ouvidos embotados de ouvir a mesma explicação: Os agentes foram recebidos à bala, revidaram e mataram. No local, segundo disseram eles, armas, drogas… Às mães que perderam seus filhos para a guerra insana que nos assola, resta a suprema humilhação. A estas mulheres que sozinhas tantas coisas suportam, o estilhaçar de gritos mudos e sempre sufocados… na porrada.
O noticiário seguiu no dia seguinte com o segundo turno das eleições e seus votos de cabresto remodelados, com o genocídio horripilante em Gaza, na Síria… com Kamala tentando evitar a volta do lunático Trump, com o futebol, com a novela, com Carla Zambeli passeando enquanto o homem que ela agrediu é condenado… Um policial foi afastado temporariamente. Um.
A bofetada no rosto daquela mãe nunca mais vai deixar de arder porque estamos com os olhos turvos, os ouvidos embotados, as línguas dormentes e o espírito anestesiado. Se a cada 23 minutos um jovem negro é morto no país, este é o tempo em que leva para outros corações se despedaçarem. Chico Buarque, compositor da música que provavelmente seja uma das mais dolorosas sobre a saudade, talvez tenha captado um fragmento da dor da mãe de Guilherme e de tantas mais que estão mergulhadas nos tristes números.
“Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu”