Ana D´Avila | Consultório popular

Sem definir se aquilo era sofrimento. Sem ao menos conhecer o doutor. Ela foi chegando para a consulta. Atendimento popular. Doía um dente, daqueles de trás na boca. Daqueles que até nem mereciam estar ali. Naqueles dentes vividos. Naquela época confusa. Médico e paciente "enfucinhados". Máscaras, luvas e álcool gel. A boca escancarou. Atendimento odontológico de urgência.

Aqueles dedos másculos, de mãos fortes e com luvas, enfiados em sua boca conferiu-lhe segurança. Até esqueceu a dor da inflamação. Ou seja lá o que se passava fisicamente naquele dia de chuva. “Vamos drenar,” falou o dentista. Daquele jeito e com aquelas mãos, poderia drenar o que quisesse. Foi lentamente encostando no dente um aparelhinho que parecia uma tesoura de manicure. A drenagem foi perfeita. Aos poucos a dor amenizou.

A  inflamação era terrível. Por ser um dente de trás na arcada dentária superior. À noite, antes da tarde da consulta, não conseguia dormir. A dor saía do dente, subia até a cabeça, latejava e, parecia que o mundo estava acabando. Uma dor quase insuportável, amenizada pela ingestão de vários comprimidos analgésicos.

Ele tratava o dente por “este cara”, numa linguagem descontraída. Ia fazendo uma espécie de locução do que estava acontecendo no consultório. O que de certa forma ia despreocupando os pacientes. Alguns cheios de histórias que a idade vai acrescentando à vida. Pacientes apaixonados por esporte, tango e vinho. Já outros, sisudas e complicadas. Pacientes idosos. De dentes já corroídos pela alimentação, pela mastigação e por escovação mal feita.

O dentista tinha olhos castanhos. Expressivos. Como de um mago ou de um  cigano.Talvez fosse um bruxo com poderes anestésicos. Mas ninguém conseguia saber como era sua boca, seus lábios e se teria bigode por baixo daquela máscara cirúrgica.

O procedimento não necessitou anestesia. Tudo ia se esclarecendo. O preço da consulta, bem razoável, ao alcance de qualquer pessoa, fosse trabalhador ou aposentado. Normalmente dentistas cobram caro pelos serviços. 

Era necessário uma segunda consulta para tratar o canal. Do dito “cara”, na linguagem do dentista. que neste dia ainda não estava de jaleco. Surgiu com uma camiseta marron onde estava escrito “Rock and Roll”. Nos braços, várias tatuagens. Deveria ter pouca idade, apesar do grisalho em suas têmporas e do modernismo da sua figura.

Falava manso e era dono de uma calmaria exuberante no trato de problemas dentários. Suas mãos poderiam ser reikianas. Falou rapidamente que gostava do mar, rock e de surfar. A toda hora recitava baixinho a palavra “Namastê”. Acreditou ter sido teleguiada até ele. O único que realmente fazia jus a palavra “doutor”. O consultório era um tanto precário e pequeno. Também se fosse confortável e espaçoso, não seria popular.

Na última consulta perguntou: há quanto tempo você trabalha como dentista? Respondeu: “Há cinco anos”. Pequeno tempo para uma grande experiência. Foi surpreendida na última consulta por um presente, dado pelo dentista. O livro intitulava-se “Doutor, meu medo é da anestesia” do Hugo Teixeira, anestesiologista carioca. Na dedicatória, uma alusão à Buda. “A lei da mente é implacável. O que você pensa, você cria. O que você sente, você atrai. O que você acredita, torna-se realidade”.

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