Ana D´Avila | O louco da pandemia

Olhando de longe, ele parecia uma pessoa normal. Mas de perto, era a própria essência da insanidade. Aposentou-se cedo, e dava para perceber o motivo de tal precocidade: tudo indicava uma pane psicológica. Talvez uns surtos no emprego, talvez tanta coisa inimaginável. Enfim, completava 58 anos de idade.

Num de seus múltiplos e tresloucados gestos existenciais, resolveu mudar de vida. Saiu de Porto Alegre numa manhã de primavera, depois de contemplar uns artesanatos no Brique da Redenção, do qual era fervoroso frequentador. Após tais passeios, tinha o hábito de rumar para a churrascaria Barranco. Lá, sempre se embebedava, se enchia de filezinho no espeto, esquecendo sua mulher e filho.

Do Barranco, naquele dia de sol e brisa, seguiu direto para a Rodoviária, deixando tudo para trás. Até a chave do carro, a mulher, o filho e a biblioteca. "Vou morar na praia", resmungou seu íntimo. E foi mesmo. Direto para Capão da Canoa. Lá chegando, tratou de alugar um apartamentinho, onde jurou que ficaria até morrer.

Passaram-se longos e doidos, três anos. Conheceu todo mundo na cidade. O prefeito, os jornalistas aposentados e amantes dos etílicos, o padre, os surfistas e um grupo que praticava meditação de zen-budismo. E todos o olhavam com certa desconfiança, não acreditando muito em sua confusa história de vida.

Até que no foguetório da entrada de ano de 2020, viu seus sonhos, definitivamente, desmoronarem. A moça da praia com quem, agora vivia, o deixou, a exemplo da família que ele esqueceu em Porto Alegre. Fez dívidas, várias tatuagens no corpo, colocou um piercing e virou frequentador assíduo dos quiosques da beira da praia.

No mês de março, já havia notícias do tal vírus, o ameaçador “corona”. Aí, ele endoidou de vez. Achava que iria morrer. Não teve mais aqueles sonos tranquilos que o ar marítimo proporcionava. Mergulhou no álcool. Literalmente. Álcool gel nas mãos, na caipirinha e no estômago.

Tudo virou ainda mais do avesso. E não tinha como voltar atrás. Nem mudar de cidade, de estado ou de país. O mundo era um caos só. E ele cada vez mais doido.

Num dia de sol intenso, foi visto carregando seu guarda-sol e cadeira de praia, rumo ao mar. A praia estava proibida. A Brigada Militar, volta e meia, fazia ronda no local para evitar aglomerações. Mas ele, em sua loucura, já não tinha medo nem certeza de mais nada. De calção de praia, praticamente nu e de máscara cirúrgica, sentou-se para fitar o mar. Ficou lá, se bronzeando e pensando na pandemia. O sol já tinha desenhado a máscara em sua pele. Mas ele nem ligava. Ficou lá, amortecido de doideira, sem ao menos piscar. Sem ao menos entender os reveses da existência.

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