Boatos que unem a eleição de 1989 à do próximo do fim de semana

Eu me lembro. E não é por ter ouvido de um especialista e muito menos ter lido sobre o assunto. Lembro-me porque estava lá e fiz matéria. Foi em 1989, a primeira eleição direta para presidente da República com a redemocratização do país após o regime militar que durou de 1964 a 1985. Tinha começado a trabalhar em redação em 1979 e passado por muitas correrias em coberturas. Mas nada comparado com o que aconteceria a poucos dias das eleições de 1989. Lembro aos colegas de hoje que não existia celulares e os telefones fixos eram poucos e muitos funcionavam precariamente. Na maioria das vezes, para se falar com uma fonte, era necessário pegar um carro e correr atrás e torcer para encontrá-la. Na época, se escrevia nas matérias que existia uma “fábrica de boatos” que jogava na opinião pública mentiras para desestabilizar a redemocratização do país. Um desses boatos dizia que, caso fosse eleito um presidente de esquerda, os militares não deixariam que assumisse. Conversa fiada. Muito embora a democracia estivesse dando os seus primeiros passos, ela era forte o suficiente para garantir a posse de quem fosse eleito, como conta a história disponível em livros, jornais e na memória dos velhos repórteres da minha geração. A eleição foi disputada por 22 candidatos, entre eles Leonel Brizola, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Fernando Collor de Mello.

Não vou discutir os detalhes da eleição de 1989, toda a história pode ser encontrada em reportagens, livros e pesquisas históricas na internet. Vamos conversar sobre alguns pontos que considero importantes por serem comuns entre as eleições de 1989 e de 2022 com os jovens jornalistas que estão na correria da cobertura diária nas redações dos noticiários e os leitores que não são jornalistas, mas gostam de saber os bastidores na nossa lida. O primeiro ponto que vamos conversar: Forças Armadas. Vejamos, de 1989 a 2022 se passaram 33 anos. Lembro-me que o boato sobre a interferência dos militares caso fosse eleito um candidato de esquerda sempre aconteceu. Mas ele vinha perdendo força nas redações com o correr dos anos, que trouxeram a consolidação da democracia e uma mudança enorme da estrutura da economia nacional. Na eleição da presidente Dilma Rousseff (PT), em 2010, o boato sobre a posse de uma esquerdista voltou a circular com certa insistência nas redações porque Dilma, durante a ditadura, militava em organizações que travaram luta armada contra o governo, como o Comando de Libertação Nacional. Em 1970, ela foi presa, torturada e passou três anos na cadeia. A história da interferência dos militares na posse de Dilma não ganhou corpo nas redações. Agora, nas eleições que acontecem no próximo fim de semana (02/10), o boato não só voltou como veio acompanhado de outros, como a contestação da eficiência e legalidade das urnas eletrônicas. Como me disse um jovem repórter de Campo Grande (MS): “Parece que o Brasil entrou em uma máquina do tempo e voltou ao passado”.

As chances das Forças Armadas interferirem nas eleições ou na posse de quem for eleito é zero. Por quê? Em primeiro lugar é do conhecimento geral que esses boatos são criados e distribuídos pelo Gabinete do Ódio, um grupo de pessoas que rodeiam o presidente da República, Jair Bolsonaro (PL), que concorre à reeleição e tem como maior adversário o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Bolsonaro é capitão reformado do Exército e fez toda a sua carreira parlamentar bajulando os torturadores da ditadura militar. Encheu o seu governo com 6 mil militares (ativa, reserva e reformados) para dar ao público a ideia que as Forças Armadas estavam no poder. Inclusive colocou generais como ministros, como é o caso de Braga Netto que concorre a vice na chapa da reeleição. As Forças Armadas não tutelam os poderes do Brasil, como têm deixado claro os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Portanto, os militares que estão com Bolsonaro estão por sua própria conta e risco. O que vou escrever a seguir não é opinião. É um fato que temos relatado em nossas matérias. O Exército, Marinha e a Força Aérea levaram três décadas para resgatar a imagem de respeitabilidade perante os brasileiros depois da aventura do golpe de 1964. Toda a respeitabilidade que conseguiram resgatar foi jogada na lata do lixo pelo governo federal. Cito apenas um dos casos. O então general da ativa do Exército Eduardo Pazuello, como ministro da Saúde (2020 a 2021), foi o responsável por tornar política de governo o negacionismo do presidente em relação ao poder de contágio e letalidade da Covid-19. A história é toda narrada nas 1,3 mil páginas do relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado da Covid. Esse relatório coloca as digitais do governo nas 680 mil mortes de brasileiros pelo vírus.

Outro fato que devemos discutir diz respeito ao nosso trabalho de jornalista. Tivemos um enorme avanço em comparação à tecnologia que se tinha à disposição para trabalhar nas redações de 1989. Sempre trabalhei com jornalismo investigativo, mesmo quando não se usava esse nome, lá nos anos 80. Esse tipo de matéria exige muito do repórter, que precisa de tempo para não escrever bobagem. Logo que as novas tecnologias começaram a chegar às redações, caras como eu pensavam que elas proporcionariam mais tempo para os repórteres se dedicarem à apuração das suas matérias. Mas aconteceu o contrário. Houve demissões em massa de jornalistas por todas as grandes e médias redações do Brasil. Os jornalistas que sobraram tiveram um aumento significativo na sua carga de trabalho. Mesmo assim, a cobertura que se está fazendo do governo Bolsonaro tem sido relevante para o leitor. Os jovens repórteres estão se superando e conseguindo passar para os eleitores um quadro muito fiel do que está acontecendo. A Constituição de 1988 nos assegurou a liberdade de imprensa. Ela nunca foi tão útil como nos dias atuais.

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