Coluna da Ana DAvila: A  velha e a Focinheira

Tia Anastácia teve uma prole de filhos. E sobrinhos incalculáveis. Frutos da família numerosa. Foi nesta época de fim de mundo que ela se destacou na sua rua e no bairro todo. Aos setenta e poucos anos nunca tinha pensado em ver o mundo  tão perturbado.

 Andarilha e acostumada aos trancos da vida, não sentia muito sua dispensa vazia. Normalmente estava. Só caprichava no feijão nosso de cada dia. Com uma jogada de arroz acebolado por cima.Os filhos já haviam crescido. Adultos saíram pelo mundo cuidando da própria vida.Ela morava sozinha com seu cachorro Sultão. Ele tinha pequeno porte, era todo pretinho e muito brabo.

 Nenhum de seus filhos era inteligente. Nenhum graduou-se em nada. Mas eram bons marceneiros, mecânicos e garis. Para eles, aos domingos, caprichava naquele feijão com o acréscimo da sobremesa. Era um sagu de tang. Que ao final, até alimentava. Mas era tudo muito barato.  Anastácia só recebia uma bolsa do governo. Com ela vivia. Com ela sofria.

Mas ainda encontrava forças para sorrir. E até gargalhar.Nos finais de semana reunida com a filharada e sobrinhos até cantava umas modas que ela aprendeu com sua mãe na roça. Ela trabalhava desde criança. Quem é pobre, dizia ela, tem que trabalhar.E se puder estudar um pouquinho, já é uma recompensa.Mas a época mudou e sempre muda.

Estávamos em março de 2020. Uma peste se alastrava no mundo atingindo o parco entendimento de Anastácia. Ela não tinha televisão. Mas um radiozinho de pilhas que a deixava bem informada quando ouvia alaridos dos vizinhos na hora dos noticiários. Ficou sabendo que a tal peste chegará ao Brasil.

"Não é possível que algum gringo tenha trazido este vírus para cá", dizia ela. Pensando nos trios elétricos baianos, nas praias do Rio de Janeiro. E daqueles corpos e bundas balançando todos tão pertos uns dos outros. Como dizia Nelson Rodrigues,"aquele aperto era até obsceno". Esfrega daqui, esfrega dali  talvez, o Carnaval fosse uma das causas da propagação.

Seu sobrinho predileto, Zezé, chegou para mais um domingo na casa da tia.Trabalhava numa fábrica de móveis e era o que lhe dava mais prazer nas conversas e nos agrados. Dele, ganhou muitos presentes. Até uma esperada panela de pressão. Na qual cozinhou muitos almoços que Zezé saboreou com grande satisfação.

Mas nos tempos de malogro  o presente mudou de cara. Numa sacolinha plástica ofertou à tia, duas garrafas de álcool gel e uma máscara cirúrgica. Explicou para a tia, que para se prevenir da peste, ela deveria usar aqueles itens de seu presente. A tia colocou a máscara.

 Foi ao espelho. Saiu apavorada: "fiquei igual ao Sultão", referindo-se ao seu cãozinho preto, recém chegado à família.Que costumava rosnar e mostrar os dentes para a vizinhança. "Coisa mais doida. Quer dizer que agora preciso usar focinheira para sair à rua"? Zezé abriu o sorriso, gargalhou e disse: "mesmo que a senhora nunca tenha mordido ninguém. É necessário  sim, agora usar focinheira".

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