Coluna do Brasil | Da Revolução Farroupilha ao racismo estrutural

Desta vez não foi com churrasco no Parque da Harmonia. Nem com grandes desfiles a cavalo. As comemorações de 2020 da Revolução Farroupilha, celebrada no dia 20 de setembro, tiveram um caráter bem mais político, principalmente no que diz respeito ao racismo, um tema recorrente na comunidade gaúcha, muitas vezes vista no restante do país como separatista ou apoiadora da ideia.

Comecemos pela Revolução Farroupilha, que durou cerca de uma década, desde seu início em 20 de setembro de 1835 até 1º de março de 1845 e gerou uma série de ídolos no imaginário “gaudério”. Ídolos que atualmente começam a ter sua real importância histórica contestada devido ao seu caráter racista. E no atribulado 2020 essa aflição não poderia passar sem ser percebida depois de outros tantos atos contra o racismo que ocorreram ao redor do mundo, com destaque aos problemas registrados nos Estados Unidos, desde o assassinato de George Floyd, ainda em maio.

Sendo assim, já no sábado, ativistas ligados ao movimento Afronte realizaram protestos tendo como alvo as homenagens em Porto Alegre a Bento Gonçalves, um dos principais nomes ligados à Revolução Farroupilha. Veterano das “Guerras do Prata”, foi o principal comandante da revolta que tinha como argumento central o descontentamento diante da taxação governamental sobre o charque produzido no Rio Grande do Sul. Mas o estancieiro, que chegou a ser nomeado “presidente dos gaúchos”, perdeu muito seu prestígio desde o século 19.

Na Avenida Bento Gonçalves, uma das vias que ligam Porto Alegre a Viamão, se viu aplicado com adesivo junto às placas de identificação da via a frase: “escravista, ladrão de gado e cavalos e contrabandista. Prometeu a liberdade aos negros e traiu”. E as manifestações não pararam por aí. Junto à estátua em homenagem a Bento Gonçalves, na avenida João Pessoa,  foi colocada uma placa plastificada com o texto: “Escravista. Disse lutar contra a liberdade, mas morreu sendo proprietário de mais de 50 negros escravizados”.

Vale lembrar que foi na chamada Revolução Farroupilha onde surgiram os “Lanceiros Negros”. Brigadas compostas por escravos que receberam a promessa de liberdade e receberam como premiação a traição, diante do “colapso farrapo”, e a morte no Massacre de Porongos, em 1844, diante das tropas de Duque de Caxias.

No domingo, mais protestos. Ao final da tarde, na avenida Ipiranga, cerca de 50 automóveis realizaram carreata com buzinaço e faixas com a famosa frase “vidas negras importam” contra a decisão da polícia de inocentar completamente o policial que alvejou o jovem Gustavo Amaral durante abordagem policial ocorrida em Marau. A tragédia ocorreu em abril, quando o carro em que o engenheiro eletricista ocupava junto com colegas se viu cercado em meio a um tiroteio entre Policiais Militares e assaltantes. “Meu irmão gêmeo , meu melhor amigo, meu companheiro, fanático pelo Grêmio foi executado pela policia militar de Marau”, declarou o gêmeo, Guilherme Amaral. 

A família alega “racismo institucional” diante da ação do policial, que teria acertado o jovem pelas costas, mesmo diante do apelo dos colegas que estavam juntos na nefasta viagem: “Não atira! Não atira, que ele é trabalhador! É nosso chefe”. O policial foi inocentado da acusação de homicídio. Para o Polícia Civil houve uma ação de “legítima defesa imaginária”. O termo técnico pode parecer inusitado mas representa o momento de uma situação em que o policial “fantasia” uma possível agressão e a ela reage. A família da vítima vem recebendo apoio de partidos como o Psol e luta por uma audiência com o governador Eduardo Leite, sonho ainda distante. “ Essa nossa luta agora não é só pelo Gustavo, mas por todas as vidas negras”, completou Guilherme.

A verdade é que os números em relação às mortes de cidadãos negros no Brasil são alarmantes. “Para se ter uma ideia, de acordo com o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2019), produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os negros representaram 75,4% dos mortos pela polícia”, declarou a advogada Gabriela Schneider, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Santa Maria.

Conforme dados recentes da Agência Brasil, os assassinatos de pessoas negras, pelas mãos da polícia ou não, cresceram mais de 11 por cento na última década. Os índices constam do Atlas da Violência 2020, divulgado em agosto pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública . Ao mesmo tempo, entre 2008 e 2018, período avaliado, a taxa entre não negros (brancos, amarelos e indígenas) fez o caminho inverso, apresentando queda de 12,9%. Quanto às mulheres constatou-se uma redução de 11,7% na taxa de vítimas não negras, ao mesmo tempo em que a relativa a negras subiu 12,4%. 

Será que pode-se considerar toda essa realidade histórica e social apenas como uma triste coincidência? Acho que não. O racismo é um problema estrutural do Brasil sim, mesmo um país que tem como principal característica a miscigenação de povos. Vimos durante o ano uma série de manifestações racistas ligadas a partidos políticos pelo Brasil inteiro. Mas não são apenas os partidos os intoxicados pelo veneno racista, mas também as instituições de maneira geral. E isso ocorre por um motivo muito simples, quem é racista não muda e sente-se mais apoderado diante da falta de uma política de combate séria e eficiente por parte dos governantes e legisladores. Como disse a escritora e filósofa Djamila Ribeiro em relação ao racismo no Brasil: “todo mundo sabe que existe, mas ninguém acha que é racista”. Eu concordo. Minha sugestão é minha utopia, qual seja,  penas muito duras.

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