Coluna do Brasil | O julgamento imoral e fanatizado de uma menina de 10 anos

Admito que o caso da menina de 10 anos que realizou um aborto na última segunda-feira (17), depois de ser abusada por quatro anos pelo próprio tio, chamou minha atenção. Mesmo que os dados de estupros e abusos de menores no Brasil sejam assombrosos e esses atos sejam corriqueiros, não consegui apenas ouvir e decidi colocar minha opinião sobre o assunto, assim como minhas experiências pessoais.

O Brasil passa por um de seus períodos mais obscuros. Evoluímos muito pouco em relação à miséria que se espraia pelo território nacional. Evoluímos muito pouco em relação à educação em cerca de 40 anos de democracia. Mas, para piorar a situação, estamos atualmente “comendo nas mãos” de pessoas que desaforadamente usam a religião como escudo por seus atos escusos. Essa dominação religiosa caminha com o Brasil desde sua descoberta, mas chegou ao seu ápice durante o governo Bolsonaro. Nunca o nome de “Deus” foi pronunciado tantas vezes em vão.  

No caso da menina que realizou o aborto, esses fatores se combinaram para criar o pior ambiente possível para a retomada da vida da vítima. Natural de Espírito Santo, ela vive em mais uma família miserável. Seu tio, principal suspeito do abuso que gerou a gravidez indesejada, já havia sido preso por tráfico de drogas. Para completar, a mãe está desaparecida. Dependente química de drogas ilícitas, pode estar até morta. E o pai está preso por homicídio.

E a catástrofe pode ser ainda maior. O próprio tio, que já se encontra preso, alegou em vídeo gravado por ele mesmo, antes de ser capturado em Minas Gerais, que os atos criminosos poderiam ser perpetrados também pelo avô e pelo filho do avô. Todos moravam na mesma casa da menina. A partir daí, podemos enxergar melhor o nível de horror passado por esta garota que sequer conseguiu viver sua infância roubada pelos nefastos parentes.

E aí eu pergunto: que direito têm as pessoas das classes média e alta de julgar a garota? Qual “Deus” poderia? Quanto mais fazer toda a balbúrdia ocorrida nas portas do hospital que acolheu a menina e realizou o procedimento, em Pernambuco. Eu mesmo respondo: nenhum direito. Quem eram os arruaceiros? Religiosos de ocasião com suas convicções deformadas. Instigada pela extremista Sara Winter, condenada a pagar R$ 1,3 milhão por publicar dados da vítima na internet, essa horda julga ter o poder sobre a palavra de Deus.

Um grupo de mulheres corajosas realizou um ato de defesa no local. Uma pequena, mas simbolicamente importante oposição para combater os religiosos que tomaram conta daquela área, chegando a forçar a porta, com a total anuência dos policiais que lá estavam e pouco fizeram para conter os fanáticos, mesmo diante dos berros e cantorias bíblicas realizadas em áreas onde se exige estrito silêncio, chamando os envolvidos no procedimento de “assassinos”.

Já está mais do que na hora de a população brasileira e das entidades que buscam defender valores humanos e democráticos se mobilizarem para travar a escalada de poder desses grupos de extremistas antes que cheguem as eleições municipais. É esse nível de organização social que garantirá menores chances de candidatos ligados a associações religiosas se elegerem. Não podemos esquecer que foi justamente a falta dessa organização conjunta que permitiu sua ascensão.

Conheço muitas mulheres que realizaram aborto. Muitas delas com a anuência dos pais. Muitas delas da classe alta e da classe média. Muitas delas crentes a Deus. E em nenhum dos os casos havia problemas de estupro ou abuso. Mas meramente para garantir uma espécie de “virgindade moral”, além da liberdade que seria ameaçada diante das responsabilidades de criar um filho. Em todos os casos, os homens envolvidos na relação concordaram, quando não pressionaram, para a realização dos abortos. Todos maiores de idade. Nenhum foi punido. Não os julguei na época, mas expus minhas críticas.

Então, não posso concordar com o julgamento social impetrado contra a menina de apenas dez anos vivendo em uma situação de extrema vulnerabilidade. Tanto que os abusos se arrastaram por quatro longos anos. Abusos que podem envolver três homens diferentes. Todos do núcleo familiar. Vale lembrar que os casos de abusos de menor não se restringem àquelas famílias em situação de pobreza, ocorrendo muitas vezes em classes sociais mais altas.

O que surge como consolo para a garotinha é que a família aceitou fazer parte do programa de Apoio e Proteção às Vítimas e Familiares de Violência. A menina partiria para um novo endereço tendo de “renascer”, assumindo uma nova identidade. Quanto à sua infância, nenhuma oração será capaz de restaurá-la, não é?

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