Há muitos anos, a psicanálise apresenta uma forma de compreensão do ser humano não reducionista. Apesar de sermos constituídos organicamente por diferentes tipos de células e tecidos – dos epiteliais aos neuronais – , não somos limitados a eles. Se fossemos, gêmeos fisicamente idênticos também o seriam psiquicamente.
Neste sentido, Lacan – em uma conferência pronunciada em julho de 1953 – propõe que a realidade humana, enquanto experiencia psíquica, é composta por três diferentes registros: Real, Simbólico e Imaginário. Em um artigo, Vivente Clavurier, explica a escolha da palavra “registro” levando em conta uma série de significados que a palavra nos remete. Umas dessas definições define “registro” como “um livro onde inscrevemos os atos, as questões de cada dia”, como os registros de casamentos ou nascimentos, por exemplo. E seguindo nesta explicação, podemos pensar que o ternário RSI (Real-Simbólico-Imaginário) nos fornece uma forma de notação diferenciada, três livros que anotamos as coisas que percebemos em suas três formas de apreensão diferentes, três dimensões do espaço habitado pelo sujeito falante (sujeito imerso no mundo da linguagem, seja ela qual for).
Para explicar de forma simples, vou me apropriar das palavras do psicanalista Christian Dunker e de seu talento para simplificar conceitos:
O registro imaginário surge do fato de que pertencemos ao mundo animal e que, portanto existem processos da nossa espécie que interferem em nossa relação com o outro (como por exemplo um sorriso, a captação da face de um semelhante, a percepção e diferenciação da face da mãe…). Ou seja, existem uma série de automatismos que dizem respeito a nossa relação com a imagem, características que o Homo sapiens tem, quando pensamos em relação a imagem.
Evoluindo, Lacan inclui neste registro o imaginário da linguagem, ou seja, a ilusão/alienação de que somos compreendidos em totalidade pelo outro com o qual nos relacionamos e a expectativa de entendimento ou de completamento pelo outro. O imaginário é então o campo da alienação, das identificações, das projeções. É esse registro que explica nossa “mania de imaginar que os outros são como a gente”. Nos alienamos na ideia de que o mundo dos outros é exatamente igual o nosso e que nossa forma de entendimento é suficiente tanto para explicar, quanto para julgar o mundo alheio. É justamente essa ilusão de simetria que faz com que, diante daquilo que é estranho, daquilo que não conseguimos reconhecer como idêntico ou que não se encaixe no mundo controlável e conhecido, tenhamos reações agressivas e desproporcionais.
O campo/registro Simbólico se articula com o do Imaginário justamente em uma relação de atravessamento, de corte. O Simbólico é na verdade um sistema, um conjunto de posições, de lugares em que nenhum elemento tem valor ou significado em si, tudo é inferido a partir das relações que aquele elemento tem com o conjunto, com a totalidade. É no Simbólico que Lacan alicerça o Inconsciente e ao afirmar que (o Inconsciente) é estruturado como linguagem, justamente chama atenção para a estrutura relacional do Inconsciente regido por uma Lei que determina as escolhas dos indivíduos.
A terceira dimensão proposta por Lacan é o registro do Real. É importante salientar que, para Lacan, Real e realidade não são sinônimos. O Real não é a realidade, é justamente aquilo que precisa ser retirado, subtraído da realidade para que possamos captá-la como uma totalidade integrada, harmoniosa, unidade dotada de sentido. Então o real é aquilo que não tem sentido, é aquilo que não se integra, o abjeto, o impensável, aquilo que não pode ser nomeado. É aquilo que resiste e aparece apenas a partir de repetições. Aquelas repetições que aparecem na vida de uma pessoa e que faz com que ela se pergunte o motivo pelos quais ela acontecem já que aparentemente não haveria nenhum sentido nelas. Repetições que independente de serem boas ou ruins perturbem o sujeito apenas pela sua existência e insistência. É justamente aquilo que escapa ao sujeito pois não pode ser explicado pelo Imaginário ou pelo Simbólico, vai designar o que faz parte do Real.
Talvez você esteja se perguntando porque eu escrevi tudo isso e aonde pretendo chegar. A questão é que a tríade Real-Simbólico-Imaginário dão conta de explicar a experiência humana de existir e de se relacionar com o mundo ao redor. Podemos explicar, por exemplo, a experiencia traumática e perturbadora que estamos vivenciando desde janeiro de 2020.
Primeiramente o novo coronavírus e a pandemia que ele impôs rompeu nossa crença alienante do registro Imaginário de que sabemos o que se passa nossa volta. Passamos a lidar com o desconhecido, tentando desesperadamente incluí-lo em um sistema de classificação que desse conta de explicar essa experiência. Imagens aterrorizadoras foram se acumulando na realidade. Cenas e relatos da tragédia foram nos tirando do conforto e da rotina alienante. Passamos a tentar buscar palavras, discursos que dessem conta dessa dor. O número de mortos foi aumentando em todo o mundo e se aproximando do nosso circulo de convivência. Nos deparamos com a impossibilidade de cuidar dos nossos doentes e com a impossibilidade simbólica de despedida daqueles que se foram. A COVID-19 nos interpelou de tal forma que até mesmo os rituais de despedida se tornaram impossíveis.
O negacionismo e a falta de cuidado de alguns podem ser explicados de muita formas e uma delas é justamente na articulação SRI. A COVID-19 nos confrontou com tudo que escapa a realidade conhecida, com o impensado, com o indizível. Nos arrancou do conforto alienante do Imaginário e da classificação sistemática conhecida do Simbólico e nos jogou no Oceano do Real aonde tudo escapa e ataca ao mesmo tempo. Alguns entenderam que era preciso se reinventar, se isolar em um mundo conhecido, no interior de suas casas em uma tentativa de escapar mas de, ao mesmo tempo, barrar o crescimento da pandemia. Outros, seja lá por que motivos, resumiram-se a tentar desesperadamente se manter ancorados em um Real e Imaginário que já não estavam disponíveis. A proporção da pandemia foi aumentando e chegamos ao ponto de que o RS, apesar de tudo que já se sabia, ter entrado em estado de calamidade representada pelo negro que cobre o mapa de classificação de risco.
Metaforizando, houve um naufrágio e enquanto alguns tentavam desesperadamente remendar o casco e construir botes para salvar o maior número de pessoas, outros passaram a colocar água dentro do navio apenas para satisfazer sua necessidade narcísica de fingir que não há risco algum.
Pensando nisso, ao invés de tentar convencer os negacionistas, passarei a recomendar terapia.
Boa sorte a todos na próxima semana!!!