“As sanções de Washington contra a Rússia destruirão a Europa, não a Rússia”, escreve o jornalista Pepe Escobar. O Diário de Viamão reproduz
O campo de batalha está desenhado.
A lista negra oficial da Rússia das nações hostis que aplicam sanções inclui os EUA, a União Europeia (UE), Canadá e, na Ásia, o Japão, a Coreia do Sul, Taiwan e Cingapura (o único país do sudeste da Ásia). Note-se como aquela ‘comunidade internacional’ segue encolhendo.
O Sul Global deve estar ciente do fatode que nenhuma nação da Ásia Ocidental, da América Latina, nem da África juntaram-se ao trem de sanções de Washington.
Moscou sequer anunciou ainda o seu próprio pacote de contrasanções. No entanto, um decreto oficial “Sobre a Ordem Temporária de Obrigações para Certos Credores Estrangeiros” que permite que empresas russas liquidem os seus débitos em rublos – o que faz alusão àquilo que virá adiante.
Todas as contramedidas russas revolvem em torno deste novo decreto presidencial, assinado no sábado passado – o qual o economista Yevgeny Yushchuk define como uma “mina nuclear retaliatória”.
Isso funciona da seguinte maneira: para pagar empréstimos em excesso de 10 milhões de rublos obtidos de algum país que aplica sanções, as empresas russas não precisam fazer uma transferência; estas podem pedir a um banco russo para abrir uma conta correspondente em rublos em nome do credor estrangeiro. Depois disso, a empresa transfere os rublos para a sua conta pela taxa de câmbio corrente e tudo fica perfeitamente legal.
Os pagamentos em moedas estrangeiras só passam pelo Banco Central da Rússia caso-a-caso. Estes devem receber uma permissão especial da Comissão Governamental para o Controle de Investimentos Estrangeiros na Rússia.
O que isto significa na prática é que o grosso dos cerca de US$ 478 bilhões de dívida externa russa podem “desaparecer” dos relatórios de balanço dos bancos ocidentais. O equivalente em rublos será depositado em algum lugar, nos bancos russos; porém, tudo permanecendo como está, os bancos ocidentais não poderão ter acesso a estes valores.
É debatível se esta estratégia direta foi o produto daqueles cérebros ‘não-soberanistas’ reunidos no Banco Central da Rússia. O mais provável é que ouve uma interferência do influente economista Sergei Glazyev, que também é um ex-conselheiro de alto nível do presidente russo Vladimir Putin para assuntos de integração regional. Há uma edição revista, em inglês, deste inovador ensaio ‘Sanções e Soberania’ (Sanctions and Sovereignity: https://rentry.co/sanctions-and-sovereignty), o qual eu resumi anteriormente.
Neste ínterim, o Sberbank confirmou que emitirá cartões de débito/crédito Mir da Rússia, com a marca associada da UnionPay chinesa. O Alfa-Bank, o maior banco privado na Rússia, também emitirá os cartões de débito e crédito da UnionPay. Apesar de haver sido lançado no mercado há apenas cinco anos, 40% dos russos já possuem um cartão Mir para uso doméstico. Agora, eles também poderão usá-lo internacionalmente através da enorme rede da UnionPay. Sem Visa e Mastercard, as comissões sobre todas as transações permanecerão na esfera russo-chinesa. Com efeito, trata-se da desdolarização.
Sr. Maduro, me dê algum petróleo
As negociações das sanções contra o Irã em Viena podem estar chegando ao seu último estágio – como foi reconhecido até pelo diplomata chinês Wang Qun. Mas foi o Ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, que introduziu uma nova variável crucial nas discussões finais em Viena.
Lavrov explicitou muito a sua exigência de undécima hora: “Nós pedimos uma garantia por escrito … de que o atual processo [de sanções contra a Rússia] deflagrado pelos Estados Unidos não danifique de maneira alguma o nosso direito ao livre e completo comércio, cooperação econômica e de investimentos e cooperação militar com a República Islâmica [do Irã].
Segundo o acordado no Plano Compreensivo Conjunto de Ação (JCPOA – Joint Comprehensive Plan of Action) em 2015, a Rússia recebe urânio enriquecido do Irã e o troca pela torta amarela e, em paralelo, reconverte a usina nuclear Fordow do Irã em um centro de pesquisa. Sem a exportação do urânio enriquecido iraniano, simplesmente não existe um acordo JCPOA. Provoca confusão mental que o Secretário de Estado dos EUA Blinken não parece entender isso
Todos sabem em Viena, os que estão nas margens incluídos, que, para que os atores todos assinem o acordo JCPOA ressuscitado, nenhuma nação pode ser individualmente visada em termos de comércio com o Irã. Teerã também sabe disso.
Então, o que está ocorrendo agora é um elaborado jogo de espelhos persas, coordenado entre as diplomacias russa e iraniana. O embaixador de Moscou em Teerã, Levan Dzhagaryan, atribuiu a um “mal-entendido” a feroz reação às palavras de Lavrov em alguns setores iranianos. Isso será exaurido nas sombras.
Segundo uma fonte de inteligência do Golfo Pérsico com acesso iraniano privilegiado, existe um elemento extra; Teerã pode já estar vendendo até três milhões de barris de petróleo por dia – “assim sendo, se eles assinarem um acordo, isso não afetará da maneira alguma o suprimento; eles apenas receberão pagamentos maiores.”
O governo estadunidense do presidente Joe Biden agora está absolutamente desesperado: hoje ele proibiu todas as importações de petróleo e gás da Rússia – que ocorre ser o segundo maior exportador de petróleo para os EUA, atrás do Canadá e à frente do México. A grande ‘estratégia de substituição’ dos EUA é a de mendigar por petróleo ao Irã e à Venezuela.
Por isso, a Casa Branca enviou uma delegação para conversar com o presidente venezuelano Nicolás Maduro, liderada por Juan Gonzalez – o principal conselheiro da Casa Branca para a América Latina. A oferta dos EUA é de “aliviar” as sanções sobre Caracas em troca de petróleo.
O governo dos Estados Unidos passou alguns anos – senão décadas – queimando todas as pontes com a Venezuela e o Irã. Os EUA destruíram o Iraque e a Líbia e isolaram a Venezuela e o Irã na sua tentativa de dominar os mercados globais de petróleo – simplesmentepara acabar, miseravelmente, tentando comprar ambos e escapar de ser esmagados pelas forças econômicas que eles deslancharam; isso comprova, novamente, que os ‘fazedores da política’ imperial são totalmente sem ideia da realidade.
Caracas pedirá a eliminação de todas as sanções contra a Venezuela e o retorno de todo o seu ouro confiscado. E parece que nada disso foi esclarecido com o ‘presidente’ Juan Guaido – que, desde 2019, é o único líder venezuelano “reconhecido” por Washington.
A coesão social foi dilacerada
Neste ínterim, os mercados de petróleo e gás estão em pânico total. Nenhum negociante ocidental quer comprar gás russo; e isto nada tem a ver com a monstruosa empresa estatal russa de energia Gazprom – a qual continua a suprir devidamente os clientes que assinaram contratos com preços fixos – de US$ 100 a US$ 300 por tonelada cúbica; (outros estão pagando mais de US$ 3 mil no mercado avulso [spot]).
Os bancos europeus estão cada vez menos dispostos a conceder empréstimos para o comércio de energia com a Rússia, devido à histeria das sanções. Uma forte dica de que o gasoduto russo-germânico Nord Stream 2 pode estar defunto é que o importador Wintershall-Dea amortizou a sua parte do financiamento, assumindo de fato que o gasoduto não será lançado.
Todos aqueles que tem um cérebro na Alemanha sabe que dois terminais extras de Gás Natural Liquefeito de Petróleo (LNG – Liquefied Natural Gas) – os quais ainda devem ser construídos – não serão suficientes para atender as necessidades de Berlin. Simplesmente não existe LNG suficiente para supri-los, A Europa terá que lutar com a Ásia sobre quem pode pagar mais. A Ásia vence.
A Europa importa aproximadamente 400 bilhões de metros cúbicos de gás por ano – sendo a Rússia responsável pelo suprimento de 200 bilhões destes. Não há maneira de que a Europa possa encontrar 200 bilhões em lugar algum para substituir a Rússia – seja na Argélia, no Qatar ou no Turcomenistão. Isso sem falar na falta dos necessários terminais de LNG.
Sendo assim, obviamente, os maiores beneficiários desta bagunça serão os EUA – que serão capazes de impor não somente os seus terminais e controles de sistemas, mas também lucrarão com os empréstimos à UE, vendas de equipamentos e pleno acesso a toda a infraestrutura de energia da UE. Todas as instalações de LNG, gasodutos e armazéns serão conectados à uma única rede, com uma única sala de controle: um sonho de negócios para os EUA.
Restará à Europa uma produção reduzida de gás para a sua diminuída indústria; perda de empregos; menor qualidade de padrões de qualidade de vida; pressão crescente sobre o sistema de segurança social; e, último, porém não menos importante, a necessidade de candidatar-se a empréstimos extraordinários dos EUA. Algumas nações voltarão para o aquecimento com carvão. A turma Verde ficará lívida.
E a Rússia? Hipoteticamente, mesmo que todas as suas exportações de energia sejam reduzidas – e estas não o serão, os seus principais clientes estão na Ásia – a Rússia não terá que fazer uso das suas reservas em moedas estrangeiras.
O total ataque russofóbico às exportações russastambém visam os metais-paládio – vitais para os produtos eletrônicos, de laptops até sistemas de aviões. Os preços estão elevadíssimos. A Rússia controla 50% do mercado global. E há os gases nobres – neon, hélio, argônio, xenônio – que são essenciais para a produção de microchips. O titânio subiu 25% e tanto a Boeing (um terço do suprimento) quanto a Airbus (dois terços) dependem do titânio da Rússia.
Petróleo, alimentos, fertilizantes, metais estratégicos, gás neon para semicondutores; todos estes estão queimando na fogueira, aos pés da Bruxa Rússia.
Alguns ocidentais que ainda consideram valiosa a realpolitik de Bismarck começaram a perguntar-se se a blindagem da energia (no caso da Europa) e o fluxo de algumas commodities das sanções pode ter tudo a ver com a proteção de uma imensa extorsão: o sistema dos derivativos de commodities.
Ao final, caso isso imploda por causa de uma escassez de commodities, o sistema inteiro das finanças ocidentais explode. Pois, isto é uma falha real de sistema.
A questão-chave é que o Sul Global possa digerir que o ‘ocidente’ não está cometendo suicídio. Essencialmente, o que temos aqui é que os Estados Unidos estão destruindo a indústria alemã e a economia europeia intencionalmente – de maneira bizarra, com a conivência destes últimos.
Destruir a economia europeia significa não permitir mais espaço de mercado para a China e bloquear o inevitável comércio estra que será uma consequência direta das trocas mais intensas entre a UE e a Parceria Econômica Regional Compreensiva (RCEP – Regional Comprehensive Economic Partnership) – o maior negócio de comércio do mundo.
O resultado final disso será que os EUA almoçarão as economias europeias, enquanto a China expande a sua classe média para mais de 500 milhões de pessoas. A Rússia ficará bem, como Glazyev delineia: soberana e autossuficiente.
O economista estadunidense Michael Hudson esboçou concisamente os contornos da auto-implosão imperial. Porém, o mais dramático – como um desastre estratégico – é quanto a parada surda, muda e cega rumo à recessão e a hiperinflação rasgará em pedaços aquilo que resta da coesão social do ocidente.
Missão cumprida.