O gravataiense que casou no Líbano em meio a Guerra da Síria

É Rafaeli Marques, formado técnico em enfermagem pelo Dom Feliciano, polêmico – por combativo – ex-presidente do Conselho Municipal de Saúde e durante quase uma década agente comunitário da Prefeitura de Gravataí, antes de cuidar da saúde de comunidades indígenas na região de Passo Fundo.

Há seis meses ele mora em Jounieh, a cerca de 20 quilômetros de Beirute, capital do Líbano conhecida como a Paris do Oriente Médio e a 150 quilômetros da capital síria Damasco, epicentro do bombardeio ‘cirúrgico’ dos aliados ocidentais.

No início da noite a 12 mil quilômetros da terra natal, Rafa aproveitava a folga no restaurante da brasileira de Viamão Lisas Cuisine para acertar os últimos preparativos para cerimônia religiosa de seu casamento neste domingo com a libanesa Maribel Nehme, 33 anos, maronita católica que conheceu pelas redes sociais, casou no civil e com quem vive por lá, após uma ponte aérea de dois anos entre o Brasil e o Líbano.

Em meio à correria, ele conversou por 30 minutos com o Diário, no final de semana.

Siga.

 

DV  – És testemunha da história. O que pode nos relatar?

Rafaeli – O Líbano está a alguns quilômetros da Síria e, por isso, na linha de fogo dos mísseis americanos. Eles estão posicionados no Mar Mediterrâneo, no Sul do Chipre, desde a semana passada. Após o atentado com armas químicas, o qual não saberia confirmar se houve ou não, o exército de Israel começou a sobrevoar o território libanês e fez lançamentos de mísseis em uma cidade próxima a Damasco, capital da Síria. Testemunhei na madrugada a ofensiva de caças israelenses e, depois, os lançamentos dos americanos, britânicos e franceses. Pelo que se calcula os mísseis sobrevoaram o Líbano, já que poderiam ser interceptados pelo litoral sírio.

 

DV – Qual o sentimento do povo libanês, vizinho a uma zona tão conflagrada?

Rafaeli – Ainda tranquilo. O que preocupa é a milícia Hezbollah, que está na fronteira lutando ao lado do governo sírio e ocupando a região contra os rebeldes e o Estado Islâmico.

 

DV  – Em algum momento sentiste medo? Como é sentir o grito e o cheiro do monstro da guerra tão perto?

Rafaeli – É muito triste… Desde que estou aqui, pela primeira vez ouvi aviões de guerra. Quando percebemos os ruídos na madrugada logo imaginei que poderia ser um ataque norte-americano. E quando foram identificados como caças israelenses, fiquei preocupado, pois o Líbano e Israel estão em um conflito diplomático. Como o exército libanês não tem a potência bélica dos israelenses, é como ouvir um monstro no céu, ameaçando… Resta um sentimento de incerteza e tristeza, principalmente pelo sofrimento do povo sírio. Só aqui no Líbano há mais de um milhão de refugiados vivendo em situação muito precária.

 

DV – A Casa Branca justifica o ataque por, desde a última ofensiva de 7 de abril de 2017, ter sido registrados “30 incidentes separados nos quais a Síria usou armas químicas, incluindo um ataque com gás sarin em novembro”. Já é possível interpretar como essa versão é percebida no Líbano, já que houve muita controvérsia sobre armas químicas no Iraque na invasão americana de 2003?

Rafaeli – Não há como ser definitivo. Tudo é possível. Há uma perceptível guerra de informações dos dois lados. A ONU investigaria o último ataque químico, mas os EUA não esperaram as novas inspeções. Os libaneses não veem com bons olhos, porque os americanos são aliados de Israel. Preocupa muito os efeitos disso tudo. O medo aqui é: e se essa guerra ganhar proporções ainda maiores e, com o decorrer dos anos, se alastrar para outros países, como o Líbano? A guerra na Síria é complexa, há muitos países, milícias e terroristas envolvidos. Cada um puxa para seu lado. Fato é que, na geopolítica, EUA, União Européia e Israel, com o governo Bashar al-Assad na Síria perderam espaço para a Rússia e o Irã. As consequências podem ser muito graves, porque além da reação do Kremlin, o Irã já ameaça aproximar suas bases da fronteira israelense.

 

DV – Após os ataques há algum tipo de recomendação de segurança para quem está no Líbano?

Rafaeli – Para os brasileiros é recomendado pela Embaixada não se aproximar da fronteira da Síria. No geral o país está andando normalmente e se preparando para eleição em maio. Mas o exército libanês está nas ruas em toda parte controlando o fluxo de carros.

 

DV – Quando voltas ao Brasil? Queres deixar um recado?

Rafaeli – Segunda embarcamos para lua de mel no Brasil. Estarei em Gravataí dia 23! Gostaria de tranquilizar minha avó, Desejanira Marques da Silva, que me criou desde os cinco anos, meus tios Ederli, Enilda, Marina e todos meus primos, que muito amo e sinto saudades. Um recado? A humanidade não aprendeu com a Primeira Guerra mundial. Alguns anos depois, aconteceu a Segunda Guerra e todos seus horrores. Parece que a lição não foi aprendida. Estão ensaiando uma Terceira Guerra.

 

: Rafaeli e Maribel em Faraya, em um sítio arqueológico de um antigo templo romano

 

: O convite para a cerimônia de casamento deste domingo

 

 

: Na foto, os preparativos na casa da noiva

 

A 'missão' de Trump

 

Para entender melhor o que aconteceu nas últimas horas, o Diário recomenda e reproduz o artigo de Jan Martínez Ahrens, publicado pelo El País sob o título A missão cumprida de Trump.

(…)

Os Estados Unidos demonstraram na noite de sexta-feira seu poder ao mundo, lançando em conjunto com a França e o Reino Unido um ataque aéreo contra o “bárbaro” regime sírio pelo suposto uso de gás de cloro contra a população civil da cidade de Duma, perto de Damasco. “Essa malvada e desprezível agressão não é obra de um homem, foram os crimes de um monstro”, declarou o presidente dos EUA, Donald Trump, em um discurso no qual prometeu manter a pressão até que a Síria abandone o uso de agentes proibidos. A represália, apresentada como um “golpe de precisão” contra alvos militares e centros de produção e armazenamento de armas químicas, ecoou além das terras sírias. Trump mostrou tanto à Rússia como ao Irã que os EUA, sob seu comando, não hesitam: abrem fogo. “Missão cumprida”, celebrou em seu Twitter nesta manhã.

Depois de seis dias de preparativos, Trump ordenou o ataque. Alguns dos alvos escolhidos foram um centro de pesquisa perto de Damasco, assim como um armazém e um posto militar, em Homs. “Nosso objetivo é promover uma forte dissuasão. Estamos preparados para manter a resposta até que o regime de Bashar al-Assad pare de usar agentes proibidos”, advertiu o presidente.

Consciente de que o tabuleiro sírio envolve mais de um jogador, Trump se dirigiu enfaticamente aos aliados de Damasco. “Pergunto ao Irã e à Rússia: que tipo de nação quer ser associada ao assassinato em massa de homens, mulheres e crianças inocentes? Nenhuma nação pode ter sucesso a longo prazo promovendo Estados falidos, tiranos brutais e ditadores assassinos. A Rússia deve decidir se continua seguindo a trilha escura ou se vai se somar às nações civilizadas como uma força de estabilidade e paz. Tomara que algum dia possamos nos dar bem com a Rússia, e inclusive com o Irã”, afirmou.

Trump, um isolacionista nato, sempre desejou retirar as tropas americanas do país − e na noite de sexta-feira, em plena ação militar, não escondeu isso: “Não nos iludimos, não podemos livrar o mundo do mal nem atuar em todos os lugares onde há tirania. Não há sangue americano suficiente para conseguir a paz no Oriente Médio. Poderemos ser parceiros e amigos, mas o destino da região está nas mãos de seu próprio povo”.

É um pensamento que o acompanha desde muito tempo antes de chegar à Casa Branca, e continua vivo nele. Há menos de duas semanas, no dia 3, Trump falou publicamente em abandonar o conflito e trazer para casa os 2.000 soldados americanos enviados à Síria. “Não conseguimos nada com isso. Não temos nada, a não ser morte e destruição. É horrível”, disse ele na ocasião. Quatro dias depois, tudo mudou. A população civil da rebelde Duma, segundo a versão americana, foi alvo de um ataque químico, que teria deixado pelo menos 60 mortos e centenas de feridos.

A agressão química ultrapassou a linha vermelha estabelecida há um ano, quando tropas sírias atacaram Jan Sheijun. Naquela ocasião morreram 86 pessoas, entre elas dezenas de crianças. As imagens de seus corpos fulminados pela ação cruel do gás sarin, um legado da era nazista, chocaram o mundo e ativaram o faro político de Trump. A represália foi imediata. Embora Moscou e Damasco, assim como agora, tenha negado sua participação na matança em Jan Sheijun, os EUA dispararam 59 mísseis Tomahawk contra a base aérea síria de Shayrat, na província de Homs.

Com essa ação militar, o presidente americano buscava também um ganho político. Se Barack Obama, com a promessa russa de retirada do arsenal químico, tinha descartado a ideia de intervir em 2013 após um ataque que matou 1.400 civis, Trump mostrava que com ele as coisas iam ser diferentes. O novo Governo estava disposto a atacar por muito menos.

Aquela intervenção foi um sucesso. Não morreu nenhum militar americano, nem russo, e os EUA eliminaram de uma só vez 20% da Força Aérea síria. Trump tinha obtido sua primeira vitória internacional. Durante meses, Bashar al-Assad sentiu o golpe e não usou o arsenal químico. Pouco a pouco, entretanto, à medida que a pressão dos EUA diminuía, foi voltando a usar gás de cloro em ataques seletivos contra os rebeldes. A Casa Branca o advertiu e seu então conselheiro de Segurança Nacional, Herbert R. McMaster, declarou que o efeito dissuasivo do bombardeio de Shayrat tinha se diluído.

O ataque a Duma, um reduto rebelde na periferia de Damasco, não só validou essa interpretação, como foi visto pela Casa Branca como um desafio à proibição de usar armas químicas. De pouco serviram os veementes desmentidos sírios e russos. Os Estados Unidos, a França e o Reino Unido concluíram que Damasco tinha cruzado o limite proibido.

O motivo pelo qual Assad voltou supostamente às velhas táticas ainda é objeto de debate. Mas quase todos os especialistas o vinculam com a declaração que Trump fez no início deste mês sobre sua intenção de retirar as tropas americanas. Se o presidente sírio viu nessa declaração um sinal de fraqueza e quis se aproveitar, continua sendo um mistério, mas aquilo de que ninguém duvida é que a matança tenha aberto a caixa dos trovões.

Assim que foi denunciado o ataque sírio contra Duma, a Casa Branca pôs a máquina de guerra em andamento. Mas desta vez não atuou sozinha nem de surpresa. Anunciou previamente sua vontade de fazer o regime sírio pagar “um alto preço”, corresponsabilizou o presidente russo, Vladimir Putin, e mobilizou sua diplomacia para formar uma coalizão internacional. A Síria e seu grande padrinho, a Rússia, desgastados por desmentidos anteriores que resultaram ser falso, não conseguiram frear a ofensiva.

Com fortes aliados externos, sem oposição interna e sabedor de que a ação lhe garante um capital político que Obama perdeu com suas hesitações, pouco antes das 21 horas de sexta-feira em Washington (22 horas em Brasília), Trump deu a ordem de ataque. Cerca de cem mísseis de cruzeiro Tomahawk foram disparados. Quase o dobro que no ano passado. Tanto o secretário de Defesa, Jim Mattis, como o chefe do Estado-Maior, James F. Dunford, assinalaram que a ofensiva se reduzia a uma só rodada de bombardeios e havia sido planejada para evitar atingir a população civil. A intervenção contou com apoio de bombardeiros B-1. O Reino Unido contribuiu com quatro aviões de combate Tornado GR4; a França, com duas fragatas e aviação.

Para justificar a ação, o alto comando americano insistiu em que, desde quinta-feira, não havia dúvida de que a Síria tinha usado gás de cloro em sua ofensiva contra Duma. A Casa Branca reiterou essa acusação e assinalou que dispunha de fotos com vítimas que apresentam ferimentos compatíveis com o uso de agentes químicos, relatos de médicos, dados de inteligência e testemunhos diretos.

“Desde a ofensiva de 7 de abril de 2017, registramos 30 incidentes separados nos quais a Síria usou armas químicas, incluindo um ataque com gás sarin em novembro. Rússia e Irã compartilham a responsabilidade pelas brutais ações do regime de Assad”, afirmou a Casa Branca.

Apesar da vontade de Trump de abandonar o campo de batalha sírio, a operação aumenta o envolvimento dos EUA e dispara o risco de escalada do conflito. No último ataque, a Rússia elevou a voz, mas deixou que a tensão esfriasse. Ajudou que Trump evitasse um choque direto com Moscou. Agora, a relação com Vladimir Putin se deteriorou. O presidente americano culpou diretamente o russo pelo que ocorreu em Duma e se mostrou furioso pela insistência do Kremlin em apoiar Assad. Ainda assim, deixou uma porta aberta para o diálogo. “Os Estados Unidos têm muito que oferecer, sua economia é a maior e mais poderosa na história do mundo”, disse Trump na noite de sexta-feira.

A reação da Rússia e do Irã marcará o futuro da região mais instável do planeta. Um vulcão engolfado pela violência onde entram diariamente em choque os interesses das grandes potências. As bombas caíram. A Síria voltou a ser atacada. Pouco se conseguiu no ano passado, e ninguém sabe se a nova intervenção reduzirá o derramamento de sangue. Depois de sete anos de guerra, meio milhão de mortos e dez milhões de deslocados, a Síria se tornou uma terra escura para a esperança.

(…)

 

: Soldado sírio filma os destroços após o bombardeio aliado

 

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