“Lula ganha, mas sua margem de manobra será limitada por forças poderosas alinhadas contra a agenda do Sul Global”. Recomendamos o artigo de Pepe Escobar, publicado no Asia Times e traduzido por Patricia Zimbres para o 247
Luiz Inácio “Lula” da Silva talvez tenha dado a maior volta por cima política de todo o século XXI. Aos 77 anos, em boa forma e afiadíssimo, liderando uma aliança de dez partidos políticos, ele acaba de ser eleito Presidente do Brasil para o que será, na verdade, um terceiro mandato após seus dois primeiros, de 2003 a 2010.
Lula chegou mesmo a ensaiar uma volta-dentro-da-volta durante a extremamente rápida e precisa apuração eletrônica, atingindo 50.9% contra os 49.1% dados ao atual presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro, o que representa uma diferença de apenas dois milhões de votos em um país de 215 milhões de habitantes. Lula assume a presidência em 1º de janeiro de 2023.
O primeiro discurso de Lula foi um pouco anti-Lula. Conhecido por suas improvisações ao estilo de Garcia Marquez e por seu fluxo de consciência muito informal, ele, desta vez, leu uma peça comedida e cuidadosamente preparada.
Lula enfatizou a defesa da democracia, a luta contra a fome, a busca do desenvolvimento sustentável com inclusão social, uma “luta sem tréguas contra o racismo, o preconceito e a discriminação”.
Ele convidou a cooperação internacional para a preservação da floresta amazônica e prometeu batalhar por um comércio global justo, em lugar de um comércio “que condena nosso país a ser um eterno exportador de matérias-primas”.
Lula, sempre um negociador excepcional, conseguiu vencer o imenso aparato estatal montado por Bolsonaro, responsável pela distribuição de bilhões de dólares para a compra de votos, uma avalanche de fake news, intimidação aberta e tentativas de supressão de eleitores perpetradas por bolsonaristas hidrófobos, além de incontáveis episódios de violência política.
Lula herda um país devastado e, de forma muito semelhante aos Estados Unidos, completamente polarizado. De 2003 a 2010 – ele, incidentalmente, chegou ao poder apenas dois anos antes do “choque e terror” dos Estados Unidos contra o Iraque – a história foi bem diferente.
Lula conseguiu trazer à mesa prosperidade econômica, um maciço alívio da pobreza e uma série de políticas sociais. Em oito anos, ele criou 15 milhões de empregos.
Uma violenta perseguição política acabou por tirá-lo das eleições presidenciais de 2018, preparando o caminho para Bolsonaro – projeto esse acalentado desde 2014 pelos militares da direita linha-dura.
O conluio entre o Ministério Público brasileiro e figurões maquiavélicos da “justiça” brasileira, visando a perseguir e condenar Lula com base em acusações espúrias, fez com que ele passasse 580 dias na cadeia, como um prisioneiro político tão notório quanto Julian Assange.
Lula acabou por ser declarado inocente em nada menos que 26 acusações levantadas contra ele por uma máquina de lawfare encravada no cerne da – profundamente corrupta – operação Lava-Jato.
O trabalho sisífico de Lula começa agora. Pelo menos 33 milhões de brasileiros estão atolados na fome. Outros 115 milhões lutam contra “insegurança alimentar”. Nada menos de 79% das famílias são reféns de altos níveis de endividamento.
Em contraste com a nova “onda cor-de-rosa” que varre a América Latina – da qual Lula é hoje o superstar – internamente a situação é outra.
Muito pelo contrário, ele irá enfrentar uma Câmara e um Senado profundamente hostis, e até mesmo governadores bolsonaristas, inclusive o do mais poderoso estado da federação, São Paulo, que concentra mais poder de fogo industrial que muitas latitudes do Norte Global.
Os suspeitos de sempre
O vetor absolutamente primordial é que o sistema financeiro internacional e o “Consenso de Washington”, que já controlam a agenda de Bolsonaro, capturaram o governo Lula mesmo antes de ele começar.
O vice-presidente de Lula, Geraldo Alckmin, é de centro-direita, e pode ser catapultado ao poder no minuto em que o Congresso profundamente hostil decida urdir algum esquema de impeachment de Lula.
Não é por acidente que o The Economist já “advertiu” Lula a se mover para o centro: ou seja, seu governo tem que, na prática, ser dirigido pelos suspeitos de sempre.
Muito dependerá de quem Lula irá escolher para ministro da economia. O candidato com mais chances é Henrique Meirelles, ex-CEO do FleetBoston, o segundo maior credor externo do Brasil depois do CitiGroup. Meirelles expressou apoio incondicional a Lula, para quem ele já havia trabalhado como presidente do Banco Central.
O mais provável é que Meirelles venha a usar o mesmo receituário de políticas econômicas que o principal economista de Bolsonaro, o banqueiro de investimentos Paulo Guedes. Esse receituário é exatamente o mesmo que foi empregado por Meirelles durante o voraz governo Temer, que chegou ao poder depois do golpe de estado institucional contra a Presidenta Dilma Rousseff, em 2016.
E agora, chegamos ao mais suculento de tudo. Ninguém mais que a Subsecretária de Estado para Questões Políticas dos Estados Unidos, Victoria Nuland, visitou o Brasil em caráter “não-oficial” em abril último. Ela se recusou a encontrar Bolsonaro e elogiou o sistema eleitoral brasileiro (“Vocês têm um dos melhores do hemisfério, em termos de confiabilidade, em termos de transparência”).
Mais tarde, Lula prometeu à União Europeia uma espécie de “governança” da Amazônia, e teve que condenar publicamente a “operação militar russa” na Ucrânia. Tudo isso depois de ele ter elogiado Biden, em 2021, como sendo “um alento para a democracia no mundo”. O “prêmio”, para o desempenho acumulado foi uma capa da revista Time.
Tudo o que foi dito acima pode sugerir que vem vindo aí um suspeito governo de pseudo-esquerda do Partido dos Trabalhadores – neoliberalismo com um rosto humano – infiltrado por vetores direitistas de todos os tipos e servindo essencialmente aos interesses de Wall Street e do Departamento de Estado controlado pelos democratas.
Os principais pontos da plataforma: aquisição de bens econômicos importantes pelos suspeitos globalistas de sempre e, portanto, espaço nenhum para o Brasil exercer uma real soberania.
Lula, é claro, é inteligente demais para se deixar reduzir ao papel de um mero refém, mas sua margem de manobra – internamente – é extremamente reduzida. O bolsonarismo tóxico, agora na oposição, continuará a prosperar institucionalmente, assumindo uma – falsa – postura “antissistema”, principalmente no Senado.
Bolsonaro se autodescreve como um “mito” criado e empacotado pelos militares, e ele ganhou proeminência cerca de um mês após a vitória eleitoral de Dilma de 2014, que deu a ela seu segundo mandato.
O próprio Bolsonaro e muitos de seus seguidores fanáticos flertaram com o nazismo, louvaram descaradamente torturadores conhecidos que atuaram na ditadura militar brasileira e incitaram as fortes propensões fascistas que espreitavam a sociedade brasileira.
O bolsonarismo é ainda mais insidioso por ser um movimento urdido pelos militares e subservientes às elites linha-dura do globalismo neoliberal. O movimento é composto por evangélicos e magnatas do agronegócio, embora pose de “antiglobalista”. Não é de admirar que o movimento tenha contaminado literalmente metade de uma nação ofuscada e confusa.
A velha e experiente China
No plano externo, Lula desempenhará um papel totalmente diferente.
Lula é um dos fundadores BRICS, em 2006, que evoluiu a partir do diálogo Rússia-China. Ele é imensamente respeitado pelos líderes da parceria estratégica entre esses dois países, Xi Jinping e Vladimir Putin.
Ele prometeu governar apenas um mandato, que termina ao final de 2026. Mas esse é exatamente o período crucial do olho do vulcão, abrangendo a década descrita por Putin na fala de Valdai como a mais perigosa e importante desde a Segunda Guerra Mundial.
O impulso rumo a um mundo multipolar, representado institucionalmente pela congregação dos organismos, que vão dos BRICS+ e a Organização de Cooperação de Xangai até a União Econômica Eurasiana, irá se beneficiar imensamente com a atuação de Lula, que talvez seja o líder natural do Sul Global – possuindo um currículo à altura de sua importância.
É claro que seu primeiro foco de política externa será a América Latina: ele já anunciou que essa será a destinação de sua primeira visita presidencial, muito provavelmente começando pela Argentina, que está posicionada para se juntar aos BRICS+.
Lula, então, visitará Washington. Ele tem que fazer isso. Mantenha seus amigos perto de você, e seus inimigos mais perto ainda. Correntes abalizadas de todo o Sul têm pleno conhecimento de que foi no governo Obama-Biden que foi orquestrada a complexa operação de derrubada de Dilma e expulsão de Lula da política.
O Brasil será um pato manco na próxima reunião do G20 a ser realizada em meados de novembro, em Bali, mas em 2023, Lula estará de volta à cena, lado a lado com Putin e Xi. E isso se aplica também à próxima cúpula dos BRICS+ a ter lugar na África do Sul, onde estará presente uma fila de países ansiosos para se juntarem ao grupo, da Argentina e Arábia Saudita até Irã e Turquia.
E então há o nexo Brasil-China. Brasília, desde 2009, é o principal parceiro comercial de Pequim na América Latina, respondendo por cerca de metade dos investimentos chineses na região (e pela maior parte de qualquer destinação de investimentos para a América Latina), e firmemente colocada como o quinto maior importador de petróleo bruto para o mercado chinês, os segundo para ferro e o primeiro para soja.
Os precedentes contam a história. Desde o início, em 2003, Lula apostou na parceria estratégica com a China. Ele viu sua primeira visita a Pequim, em 2004, como sua prioridade máxima de política externa. A boa-vontade de Pequim é inabalável: Lula é visto como um velho amigo pela China – e esse capital político irá abrir praticamente todas as portas vermelhas.
Na prática, isso significa que Lula irá investir sua considerável força global no fortalecimento dos BRICS+ (ele já declarou que os BRICS estarão no centro de sua política externa) e no funcionamento interno da cooperação geopolítica e geoeconômica Sul-Sul.
O que talvez signifique que Lula irá transformar o Brasil em um parceiro da Iniciativa Cinturão e Rota, de uma maneira que não seja hostil aos Estados Unidos. Afinal, Lula é um mestre desse ofício.
Encontrar o caminho no olho do vulcão, tanto interna quanto externamente, será o desafio político definitivo para a volta por cima. Lula já foi dado por politicamente morto por diversas vezes, de modo que subestimá-lo é uma péssima aposta. Mesmo antes de começar seu terceiro mandato, ele já realizou uma tremenda façanha: emancipar a maioria dos brasileiros da escravidão mental.
Todos os olhos estão voltados para o que os militares brasileiros – e os estrangeiros que os controlam – realmente querem. Eles embarcaram em um projeto de muito longo prazo, controlam a maioria das alavancas da estrutura do poder e simplesmente não irão desistir. Portanto, as probabilidades talvez não ajudem o velho neo-Ulisses nascido no Nordeste brasileiro a alcançar sua Ítaca ideal de uma terra justa e soberana.