Coluna do Gustavo: Eu não mereço

A vida pode ser muito injusta as vezes. Na verdade, acho que em sua maioria, não há justiça nos acontecimentos mundanos. Comigo, chega a ser incrível a sequência de injustiças ocorridas em situações do meu dia-a-dia. Por exemplo, todas as vezes que caminhei na rua onde moro, encontrei meu carro ali estacionado intacto, sem arranhões ou pneus furados. Nunca ninguém tentou arrombá-lo ou sequer quebrar os vidros. Não fiz nada para merecer isso.

Também não mereço ir ao supermercado pegar de prateleiras bem organizadas os itens essenciais para minha sobrevivência, muito menos levá-los até o local onde alguém me espera apenas para passá-los numa máquina e eu colocar um cartão numa outra máquina, apertar uns números e sair dali levando os produtos. Durante esta pandemia, percebi também como não mereço ser recebido por um funcionário do supermercado pronto para dar uma esguichada de álcool em minhas mãos enquanto vejo outro passar um pano nos carrinhos para evitar contaminações.

Chegar no meu apartamento e encontrá-lo exatamente como o deixei – sem que tenha sido invadido – entrar, fechar a porta e desfrutar de segurança e privacidade, são luxos tão maravilhosos pelos quais não lembro de ter feito nada para merecer. Sem dúvida, não mereço abrir minha geladeira e retirar lá de dentro alimentos preservados pela baixa temperatura, colocá-los em um prato de porcelana que muitos reis de antigamente escravizariam para conseguir e levá-lo até uma caixa que tenho na cozinha onde aperto um botão e em um minuto a comida está esfumaçando de tão quente.

Também não há merecimento nenhum meu para, neste frio, eu tirar a roupa, ir para o banheiro, girar uma torneira e sentir a água quente que sai não sei de onde e esquenta não sei como. Não mereço deitar na cama confortável e, se o inverno estiver muito rigoroso, buscar em meu armário, do meio de um monte de casacos, mais um cobertor para me aquecer.

Com certeza não mereço meus amigos e suas mensagens de vídeo, que chegam por mágica na palma da minha mão, me chamando para saírmos. Quando era permitido, nós saíamos e falávamos sobre trabalho, arte e política, sem que nenhum de nós tivesse feito absolutamente nada para merecer a liberdade de se manifestar à favor ou contra o antigo ou atual governo e não ser perseguido, preso ou sequer censurado. Outra situação que eu não mereço, mesmo, é conhecer uma mulher, me interessar por ela e a gente poder se envolver sem pressões da sociedade, risco de gravidez indesejável ou transmissão de doenças. O que nós fizemos para ser livres para, caso quisermos, casar, ou caso não quisermos mais nos ver, nunca mais nos ver? Nada.

Com relação aos meus familiares, os quais me permitem desfrutar do privilégio de conviver com crianças recém-nascidas até pessoas de mais de noventa anos, nem esta crônica, um livro inteiro, ou até mesmo uma coletânea seriam capazes de ilustrar o quanto não os mereço. Considero estas e outras tantas situações muito injustas. Não mereço nenhuma delas. E, exatamente por não merecer, eu agradeço.

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