Datafolha: Lula só perde para si mesmo. E os velozes enfezados e furiosos

Recomendamos o artigo do jornalista Reinaldo Azevedo, publicado em sua coluna no UOL


Preparados para uma jornada longa? Partiu.

Pesquisas avaliando 90 dias de gestão do presidente têm o peso que têm: quase nenhum. Não é, por óbvio, um vaticínio de como chegará ao fim do mandato. Até porque se pode apelar a malandragens na boca da urna para tentar mudar o jogo. Peguem o caso do Biltre Retornado: levantamentos apontavam derrota no primeiro turno. Recorreu a PECs ilegais para baixar o preço de combustíveis e aumentar os gastos sociais e fabricou bolha de crescimento. A mobilização da máquina de “fake news” atingiu níveis até então inalcançados. A diferença em relação a Lula, o vitorioso no segundo turno, foi de 1,8 ponto percentual. “Mas a pesquisa serve, Reinaldo, como um termômetro inicial ao menos?” Huuummm… Bem pouquinho. Diria que acaba medindo mais a febre dos analistas do que a do analisado. Vamos ver.

Segundo o Datafolha, 38% dos ouvidos nos dias 28 e 29 de março acham o governo ótimo ou bom; para 30%, é regular. Para 29%, é ruim ou péssimo. Já se pôs bastante o foco no analisado. Vamos aos analistas. Sabem vocês que, com um pouco de fel, pode-se dar uma bronca até em Deus por ter feito chover apenas maná em vez de oferecer um cardápio. Pois é… Yahweh não era exatamente um democrata… Na leitura enfezada, Lula se iguala a Bolsonaro (30%), na margem de erro, NO MAIOR ÍNDICE DE RUIM/PÉSSIMO PARA OS NOVENTA DIAS DE UM PRIMEIRO MANDATO DESDE A REDEMOCRATIZAÇÃO. Releiam o que vai em caixa alta. É afunilamento demais de critério para juízos largos sobre o desempenho do presidente, não?

Há uma outra leitura: no “ótimo/bom”, Lula bate o Homiziado dos Diamantes por 38% a 32%, empata com FHC (39%) e fica dois pontos percentuais acima de Fernando Collor (36%), o impichado. Perde para Dilma (48%) e para si mesmo (43%). Insista-se: fala-se aqui de primeiros mandatos. Consideradas as reeleições, a síntese é esta: Lula bate Bolsonaro, como já visto, e só perde para Lula 1 (43%), Lula 2 (48%) e Dilma 1 (48%). Uma boa alternativa de manchete: “Nos 90 dias, Lula só perde para Lula e para Dilma”. Como ele fez a criatura, só perde para si mesmo.


Ocorre que…


Parece-me, no entanto, que essas comparações, por si, não fazem nenhum sentido. “Temos excelentes críticos de árvores. Dane-se a floresta. Cada um deles vê em seu microscópio esse ou aquele detalhes e nada dizem ou sabem do conjunto, para lembrar a personagem Martha, de ‘Quem Tem Medo de Virginia Woolf’, de Edward Albee” . Cito, aí em destaque, a mim mesmo nesta coluna, no dia 16 de dezembro do ano passado, a propósito da pancadaria de que Lula, já eleito, era alvo por causa da PEC da Transição. Lembro: o déficit primário deste ano não será de mais de R$ 260 bilhões, conforme anteviam os apocalípticos; deve ficar em torno de R$ 100 bilhões, talvez menos. As análises de então ignoravam o delinquente Orçamento de 2023 que Bolsonaro havia enviado ao Congresso. Então e agora, o fel analítico (se é que não se trata de militância) serve para adoçar a boca de reacionários e golpistas. Sigamos.

As comparações com os primeiros 90 dias de governos passados, incluindo os do próprio Lula, não têm grande relevância. Não dizem absolutamente nada porque ignoram a história de cada um dos períodos e o que se deu na política entre uma ponta e outra. Não me incluo entre aqueles, já deixei isto claro mais de uma vez, que normalizam o bolsonarismo como uma corrente de opinião que topa o jogo democrático, ainda que com um aporte ideológico, intelectual, valorativo, ético e moral que não é o meu. Fosse assim, nada de novo haveria no “front” dos embates políticos. Considero essa leitura uma aberração e acho que ela embute desprezo nada solene pelas variáveis que parametrizam a democracia. Entender tal corrente como parte — ainda que apenas um franja radical fosse — do tal jogo democrático eleva praticas fascistoides à condição de atos aceitáveis e degrada o pacto civilizatório.


O que “a” tem a ver com “b”


O que tem a ver o parágrafo anterior com a pesquisa? Lula venceu Bolsonaro por 50,9% a 49,1%, no confronto mais acirrado da história. Dispenso-me aqui de detalhar o ambiente em que se deu a eleição, sob permanente ameaça golpista; com uma inédita politização das Forças Armadas desde a redemocratização; com uma campanha de ódio contra as instituições como nunca se viu; com a defesa escancarada da intolerância como instrumento do fazer político; com a incitação ao crime sendo chamada de liberdade de expressão — e o conjunto, também não é preciso demonstrar, resultou no Dia da Vergonha — o 8 de janeiro.

1990, 2003, 2007, 2011, 2015, 2019… Nada é comparável. Nem os três primeiros meses de governo Bolsonaro servem de medida remotamente válida para o que se tem agora. O PT perdeu, em 208, uma eleição que poderia ter vencido não fossem as ações criminosas da Lava Jato, com o líder maior do partido na cadeia, em razão de uma condenação sem provas. Os petistas foram fazer o que se faz numa democracia quando se é derrotado nas urnas: política. Não houve, como é evidente, questionamento do resultado.

Num movimento que a muitos surpreendeu, não a mim, Bolsonaro passou a comandar a pregação golpista desde o primeiro dia de mandato. Nos seus dois discursos de posse, já se identificam, apontei então, as sementes do rompimento da ordem, de que se transformaria em arauto. O primeiro grande ato golpista no país data, atenção!, de 26 de maio de 2019 — e o “morismo” era uma das forças organizadoras da manifestação. Dispenso-me de lembrar aqui os textos da turma do “Senta, que o leão é manso”, inferindo que Bolsonaro seria contido pelas instituições. Ainda hoje há quem delire com isso. Como se a natureza desses movimentos de extrema-direita mundo afora não fosse justamente a disrupção. Inexiste bolsonarismo benigno. Sem o rompimento da ordem democrática, bolsonarismo não é. Voltemos ao leito.

O país enfrenta a pregação golpista desde meados de 2018, ainda na campanha eleitoral. Passou a ser uma prática diária a partir de 1º de janeiro de 2019; transformou-se em ameaça às eleições em 2022; acirrou-se com o resultado do segundo turno; virou mobilização efetiva em favor do golpe e culminou com o ataque às respectivas sedes dos Três Poderes. Eram e são os vários estágios da repulsa à democracia, com tradução em setores influentes da imprensa profissional. Infelizmente. Ainda volto ao ponto.


Excelente resultado


Que Lula obtenha, pois, as marcas encontradas pelo Datafolha, penso eu, é um feito, sempre considerando a pequena relevância de uma avaliação em prazo tão curto. Nas condições dadas, o resultado é excelente. Considero surpreendente que 7% dos que votaram no Homiziado da Cloroquina avaliem que o governo é ótimo ou bom; para 30% nesse corte, é regular, sendo ruim/péssimo para 60%.

Os dados não são exatamente congruentes com os 37% que veem um Lula com comportamento sempre adequado e 24% quase sempre, índices que se somam: 61%. O “quase nunca adequado” (20%) e “nunca adequado” (18%) somam 38%, bem abaixo dos 60% que, tendo votado em Bolsonaro, acham o governo ruim/péssimo. “Ah, Bolsonaro também foi bem nesse quesito nos 90 dias…” É… Mas os números são diferentes: 27% o viam como adequado (13 pontos a menos). O seu “nunca adequado” era de 23%.

Parcela considerável dos que apostaram num “Bolsonaro 2” espera coisa boa de “Lula 3”. Por que se pode afirmá-lo? No conjunto, apostam num desfecho virtuoso 50% dos que responderam a pesquisa. Dizem que será regular 37%. Só 21% estão certos de que será ruim/péssimo, bem abaixo dos 49,1% dos votos dados ao Homiziado da Chopard. Indago: esses números não lhes parecem mais importantes do que a comparação com os 90 dias de mandatos passados?


Fez menos, fez mais


Lula fez menos ou fez mais do que o esperado? Questão complicada essa, né? Que medida tem o eleitor para decidir se, em 90 dias, o presidente foi além das expectativas ou ficou aquém? Alguém tem mesmo isso definido na cabeça, na agenda ou nas notas do celular? Responderam “menos” 51%; para 35%, o esperado; para 18%, mais do que esperavam. Fosse eu um dos entrevistados, apontaria faltar a categoria “muito mais”.

Listo alguns pontos: comandou, mesmo antes da posse, a necessária PEC da Transição, ou não haveria governo; venceu um golpe de Estado; refundou o Minha Casa Minha Vida; recriou o Bolsa Família com mais recursos e com as devidas contrapartidas; relançou o Mais Médicos; retomou o Programa de Aquisição de Alimentos; pôs fim às comemorações de golpe militar; trocou o comandante do Exército; deu início à despolitização das Forças Armadas; fez com que o Brasil voltasse a frequentar as boas rodas diplomáticas do mundo, deixando de ser pária orgulhoso.

E, no feito mais recente, apresentou uma âncora fiscal ao país cinco meses antes do prazo (31 de agosto). O texto — e a versão final será do Congresso — surpreendeu os falcões do fiscalismo burro, que apostavam, sei lá, em algum arranjo keynesiano próprio do século passado. Não satisfaz à fome de vísceras da rapinagem, é fato, porque também busca preservar os mais vulneráveis, mas fica muito longe de ignorar a necessidade de equilibrar as contas públicas. O texto se segue à decisão corajosa de reonerar os combustíveis em nome do equilíbrio das contas públicas. Como se sabe, a desoneração foi levada a efeito pelo Homiziado do Fuzil na resta final da eleição.


A imprensa e os mais pobres


Ali acima digo que o mau espírito destes tempos contaminou parte da imprensa. Não acho que dispense a Lula, em suas várias esferas — reportagem, colunismo, editoriais — e com exceções raras, um tratamento condizente com o que se fez até aqui, dadas as dificuldades que enfrentou.

Já na campanha eleitoral havia certo esforço em favor da falsa simetria entre “lulismo” e “bolsonarismo”, como se fossem opostos combinados. Com a vitória do petista nas urnas, veio a PEC da Transição que, entendo, empurrou a crítica para o terreno da irracionalidade e do erro. Onde eu e uns poucos, nesse grupo restrito e pequeno da imprensa, vimos habilidade — negociar uma emenda sem nem ter assumido a Presidência, com um governo agonizante, que levou à paralisia até a emissão de passaportes —, os críticos viram as portas abertas para o vale-tudo e para a farra com o dinheiro público.

Quando o presidente decidiu criticar a decisão do BC de manter inalterada a pornográfica taxa de juros, constatou-se que há no país uma verdade revelada, acima de quaisquer outras, que não está sujeita a avaliações, escrutínio ou reparos. A reação furiosa a Lula é antidemocrática, passional e ilógica. O mandatário só fala o que fala porque, afinal, existe a autonomia. Não fosse ela, poderia demitir esse ou aquele. Ora, estando blindada a diretoria do BC, a taxa de juros passa a ser um assunto sobre o qual o chefe do Executivo está proibido de falar? Acabou a infalibilidade dos papas? Ela agora está com Roberto Campos Neto e com Ali Khamenei? Houve até quem associasse a crítica de Lula ao Copom à pregação golpista de Bolsonaro contra o STF.

Não vejo sinais de que a má vontade vá diminuir. Está em curso uma “foxnewsação” do noticiário, com veículos disputando a tapa os setores mais reacionários do eleitorado. Sei lá se haverá reaças suficientes para toda essa gente. As barbaridades e burrices que se disseram e se escreveram sobre o arcabouço fiscal indicam que os dias não serão fáceis.

O povo mais pobre tem de Lula uma avaliação que passa longe daquela que fazem esses setores: 45% dos que recebem até dois salários mínimos acham o governo bom ou ótimo. É o que entendem também 53% dos nordestinos. E isso nos põe diante do que eu chamaria “Paradoxo do Conselheiro Reacionário”.


O paradoxo do conselheiro reacionário


Não é raro que os textos censurando Lula duramente sejam vazados num tom de rancor, porém contido por certo espírito de aconselhamento, de quem, assim, pretende ajudar o aconselhado a não fazer besteiras, o que, claro!, seria bom para o Brasil — e jamais devemos desprezar as vocações patrióticas.

Ocorre que, com frequência, os erros que veem em Lula são justamente aqueles que fazem com que ele tenha uma avaliação positiva entre os mais pobres — que, afinal, garantiram a sua eleição, como resta evidente.

Já pensaram? Se a PEC da Transição, por exemplo, tivesse se limitado àqueles pretendidos R$ 70 bilhões ou R$ 80 bilhões, suficientes apenas para pagar os R$ 600 do Bolsa Família — nem isso estava no absurdo Orçamento de Bolsonaro —, teria sido impossível o pagamento do adicional para as crianças; a reserva de R$ 9,5 bilhões para o Minha Casa Minha Vida; a continuidade, em padrões aceitáveis, do Farmácia Popular; a correção das perdas absurdas de Saúde e Educação… E noto que parte desses benefícios ainda não impactou os mais vulneráveis porque não houve tempo.

Assim, seguisse Lula o conselho dos reacionários, vendido como mero triunfo do bom senso, perderia justamente o apoio do mais pobres. O “paradoxo”, notem bem, está em que, sob o pretexto de pôr o presidente no bom caminho, esses conselheiros acabariam por destruir a reputação do mandatário junto àqueles que o elegeram e garantem a sua avaliação mais positiva do que negativa. O Catão da hora não viveria contradição nenhuma. Estaria apenas sendo bem-sucedido no seu intento… reacionário.

O governo não cometeu erros? Cometeu alguns. Bem poucos até aqui. Para três meses, a lista de acertos que vai acima parece-me bem impressionante. Os pobres e os nordestinos, tudo indica, os percebem com menos dificuldades.

Tendo a importância que tem, e não é muita, a pesquisa Datafolha é excelente para Lula. E dá a oportunidade para que se possa chegar ao “é da coisa”. Posso estar errado, é evidente. Repetindo o que escrevi em coluna recente na Folha, se os velozes enfezados e furiosos estiverem certos, vão se fartar de batatas na mesa do bolsonarismo convertido a um novo normal. Lutam muito por isso. Eu, com certeza, ficarei bem longe desse festim diabólico.

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