“Por anos, os Estados Unidos executaram o programa israelense de desestabilização usando terroristas-fantasma como justificativa para a ‘Guerra ao Terror’”. Compartilhamos o artigo do jornalista Pepe Escobar, traduzido por Patricia Zimbres para o 247
“A colonização… é o melhor ramo de negócios no qual um país antigo e rico pode se engajar… as mesmas regras de moralidade internacional não se aplicam… entre nações civilizadas e bárbaros”.
– John Stuart Mill, citado por by Eileen Sullivan em “Liberalism and Imperialism: JS Mill’s Defense of the British Empire,” Journal of the History of Ideas, vol. 44, 1983.
Os acontecimentos de 11 de setembro de 2001 tiveram como propósito impor e sacramentar um novo paradigma imperialista ao jovem século XXI. A História, entretanto, se decidiu por um outro rumo.
Retratada como um ataque ao território pátrio dos Estados Unidos, o 11 de setembro de 2001 gerou de imediato uma Guerra Global ao Terror, lançada às 11 horas daquela mesma manhã. Inicialmente batizada pelo Pentágono de “a Longa Guerra”, o termo mais tarde foi higienizado pelo governo Barack Obama como “Operações de Contingência Ultramarinas”.
A Guerra ao Terror fabricada pelos Estados Unidos gastou os notoriamente irrastreáveis oito trilhões de dólares para derrotar um inimigo fantasma, matou mais de meio milhão de pessoas – em sua imensa maioria muçulmanos – e se subdividiu em guerras ilegais contra sete estados de maioria muçulmana. Tudo isso foi incansavelmente justificado por “motivos humanitários” e supostamente apoiado pela comunidade internacional – antes de esse termo, por sua vez, ser substituído por “ordem internacional baseada em regras”.
Cui Bono? (quem lucra?) continua sendo a pergunta suprema sobre as questões relacionadas ao 11 de setembro de 2001. Uma coesa rede de neocons fervorosamente pró-Israel, estrategicamente posicionados em todos os órgãos de defesa e segurança nacional pelo Vice-presidente Dick Cheney – que havia sido secretário de defesa no governo do pai de George W. Bush – foi acionada para impor a agenda há muito planejada do Projeto para o Novo Século Americano (PNAC). Essa ampla agenda esperava nos bastidores pelo gatilho – uma “nova Pearl Harbor” – que justificasse uma série de operações de mudança de regime e de guerras em grande parte do Oeste Asiático e em outros estados muçulmanos, remodelando a geopolítica global para beneficiar Israel.
A notória revelação feita pelo General Wesley Clark, do exército dos Estados Unidos, sobre um plano secreto do regime Cheney de destruir sete grandes países islâmicos no período de cinco anos, do Iraque, Síria e Líbia até o Irã, mostra que o planejamento havia sido feito com antecedência. Esses países-alvo tinham uma coisa em comum: eles eram firmes inimigos do estado de ocupação e fortes apoiadores dos direitos dos palestinos.
O melhor de tudo, da perspectiva de Israel, era que a Guerra ao Terror faria com que os Estados Unidos e seus aliados ocidentais lutassem todas essas guerras benéficas a Israel em nome da “civilização” e contra os “bárbaros”. Os israelenses não poderiam ficar mais felizes e satisfeitos com o rumo que as coisas estavam tomando.
Não é de admirar que o 7 de outubro de 2023 seja uma imagem especular do 11 de setembro de 2001. O próprio estado de ocupação apregoou que o 7 de outubro era o “11 de setembro de Israel”. Os paralelos são muitos em mais de um sentido, mas certamente não da maneira que os apoiadores de Israel e a quadrilha de extremistas que governa Tel Aviv esperavam.
Síria: o ponto de virada
O Hegêmona ocidental prima na construção de narrativas e, atualmente, chafurda nos pântanos da russofobia, da iranofobia e da sinofobia que ele próprio criou. O tabu supremo continua sendo desacreditar as imutáveis narrativas oficiais, como a do 11 de setembro.
Mas o construto de uma narrativa falsa não consegue se sustentar para sempre. Há três anos, no vigésimo aniversário da queda das Torres Gêmeas e do início da Guerra ao Terror, assistimos a um espetacular desfecho na intersecção da Ásia Central e do Sul: o Talibã retomou o poder, celebrando sua vitória sobre o Hegêmona em sua desnorteada Guerra Eterna.
A essas alturas, a obsessão com os “sete países em cinco anos” – com o objetivo de forjar um “Novo Oriente Médio” – estava descarrilhando em todo o espectro. A Síria foi o ponto de virada, embora alguns digam que os jogos já estavam feitos quando a resistência libanesa derrotou Israel em 2000, e novamente em 2006.
Mas esmagar a Síria independente teria aberto o caminho para o Santo Graal do Hegêmona – e de Israel: mudança de regime no Irã.
As forças de ocupação dos Estados Unidos entraram na Síria em fins de 2014, com o pretexto de “lutar contra o terror”. Tratava-se das Ocupações de Contingência Ultramarinas de Obama em ação. Na verdade, entretanto, Washington estava empregando dois grupos terroristas importantes – o Daesh, também conhecido como ISIL e ISIS, e a Al Qaeda, também conhecida como Jabhat al-Nusra e Hayat Tahrir al-Shamna, na tentativa de destruir Damasco.
Isso foi conclusivamente provado por um documento da Agência de Inteligência dos Estados Unidos (DIA), datado de 2012, que teve seu sigilo levantado originário e mais tarde foi confirmado pelo General Michael Flynn, diretor do DIA à época da redação do documento: “creio que se tratou de uma decisão intencional [do governo Obama]” de ajudar, e não de combater o terror.
O ISIS foi concebido para lutar contra os exércitos iraquiano e sírio. O grupo terrorista teve origem na Al-Qaeda no Iraque (AQI), sendo então rebatizado de Estado Islâmico no Iraque (ISI), depois de ISIL e, por fim, ISIS, depois de ter cruzado a fronteira da Síria em 2012.
O ponto crucial é que tanto o ISIS quanto a Frente Nusra (mais tarde Hayat Tahrir al-Sham) eram ramificações extremistas salafi-jihadistas da Al-Qaeda.
A entrada da Rússia na cena síria a convite de Damasco, em setembro de 2015, foi um divisor de águas. O Presidente russo Vladimir Putin decidiu-se por se engajar de fato na verdadeira guerra contra o terror em território sírio, antes que esse terror atingisse as fronteiras da Federação Russa. O que foi expresso na formulação padrão que circulava em Moscou à época: a distância entre Aleppo e Grozny é de apenas 900 quilômetros.
Os russos, afinal, já haviam sido submetidos ao mesmo tipo e modus operandi de terror na Chechênia, na década de the 1990. Mais tarde, muitos jihadistas chechenos escaparam e acabaram se juntando aos suspeitíssimos grupos atuando na Síria e financiados pelos sauditas.
O grade analista libanês Anis Naqqash, hoje falecido, mais tarde confirmou que foi o lendário comandante da Força Quds iraniana, Qassem Soleimani, que, pessoalmente, convenceu Putin a entrar em cena na guerra da Síria e ajudar a derrotar o terrorismo. O plano-mestre estratégico, segundo transpirou, era debilitar de forma fatal os Estados Unidos no Oeste Asiático.
As instituições de segurança dos Estados Unidos, é claro, jamais perdoariam Putin, e principalmente Soleimani, por derrotar seus utilíssimos soldados rasos jihadistas. Por ordem do Presidente Trump, o general iraniano opositor do ISIS foi assassinado em Bagdá em janeiro de 2020, juntamente com Abu Mahdi al-Mohandes, o comandante adjunto das Unidades de Mobilização Popular (UMPs) do Iraque, um vasto espectro de combatentes iraquianos que se juntaram para derrotar o ISIS no Iraque.
O funeral do legado do 11 de setembro
O tour de force estratégico de Soleimani, de montar e coordenar o Eixo da Resistência contra Israel e Estados Unidos, foi construído ao longo de muitos anos. No Iraque, por exemplo, as UMPs foram colocadas na vanguarda da resistência porque os militares iraquianos – treinados e controlados pelos Estados Unidos – simplesmente eram incapazes de lutar contra o ISIS.
As UMPs foram criadas com base em uma fatwa do Grão-Aiatolá Sistani, de junho de 2014 – quando o ISIS deu início a suas incursões no Iraque – implorando a “todos os cidadãos iraquianos” que “defendessem seu país, seu povo, a honra de seus cidadãos e de seus lugares sagrados”.
Diversas UMPs receberam o apoio das Forças Quds de Soleimani – que, ironicamente, por todo o restante daquela década, foi taxado por Washington de “terrorista-mestre”. Paralelamente, o que foi da maior importância, o governo iraquiano hospedou em Bagdá um centro de inteligência anti-ISIS, comandado pela Rússia.
O crédito pela derrota do ISIS foi principalmente para as UMPs, complementado pelo auxílio prestado a Damasco pela integração de unidades da UMP ao Exército Árabe Sírio. Essa foi a verdadeira guerra ao terror, não aquela invenção americana erroneamente apelidada de “Guerra ao Terror”.
E, melhor ainda, a resposta dada ao terror pelo Oeste Asiático foi e continua sendo não-sectária. Teerã apoia a Síria secular e pluralista e a Palestina sunita; no Líbano há uma aliança Hezbollah–Cristã; as UMPs iraquianas são uma aliança sunita-xiita-cristã. O Dividir para Dominar simplesmente não se aplica a uma estratégia antiterror genuinamente nativa.
O que ocorreu, então, em 7 de outubro de 2023 propeliu as forças regionais de resistência a um patamar totalmente inédito.
Em um rápido lance, foi destruído o mito da invencibilidade israelense e da superioridade de seu tão louvado serviço de inteligência e vigilância. Enquanto o genocídio em Gaza prossegue inabalado (com possíveis 200 mil mortes de civis, segundo The Lancet), a economia israelense está sendo destroçada.
O estratégico bloqueio conduzido pelo Iêmen do Bab al-Mandeb e do Mar Vermelho a qualquer navio cargueiro vinculado a Israel ou para lá destinado é uma jogada de mestre em termos de eficiência e simplicidade. Não apenas o estratégico porto israelense de Eilat foi levado à bancarrota, como também houve o bônus extra de o Hegêmona talassocrático ser submetido a uma espetacular humilhação quando os iemenitas de fato derrotaram a Marinha dos Estados Unidos.
Em menos de um ano, as estratégias conjuntas do Eixo da Resistência, resumidamente, enterraram a sete palmos a falsa Guerra ao Terror e sua multitrilionária mamata.
Por mais que Israel tenha lucrado com o desenrolar dos acontecimentos posteriores ao 11 de setembro, a atuação de Tel Aviv após o 7 de outubro acelerou vertiginosamente sua derrocada. Hoje, em meio à maciça condenação do genocídio em Gaza por parte da Maioria Global, o estado ocupador vê-se na condição de pária – maculando seus aliados e expondo a hipocrisia do Hegêmona a cada dia que passa.
Para o Hegêmona, a situação torna-se ainda mais alarmante. Lembrem-se da advertência feita em 1997 pelo Dr. Zbigniew “Grande Tabuleiro” Brzezinski: É imperativo que não venha a surgir um rival eurasiano capaz de dominar a Eurásia e, portanto, desafiar a América”.
No final das contas, toda a combinação do som e fúria do 11 de setembro, da Guerra ao Terror, da Longa Guerra, da Operação Isso-e-Aquilo ao longo de duas décadas, se metastizou exatamente naquilo que “Zbig” temia. O que surgiu não foi um mero rival, mas uma bem-estruturada parceria estratégica russo-chinesa, que vem dando um novo tom a toda a Eurásia.
De uma hora para outra, Washington esqueceu totalmente o terrorismo. Esse é o “inimigo”, que hoje é visto como as duas principais “ameaças estratégicas” aos Estados Unidos. Não se trata mais da al-Qaeda, em suas muitas encarnações, um frágil criação da imaginação da CIA, reabilitada e higienizada nas últimas décadas na forma dos míticos” “rebeldes moderados” da Síria.
O que é ainda mais sinistro é que o absurdo conceitual da Guerra ao Terror forjada pelos neocons imediatamente após o 11 de setembro, agora vem-se transformando em uma guerra de terror (itálicos meus), utilizando, como último recurso, a jogada desesperada da CIA e do M16 na Ucrânia para “confrontar a agressão russa”.
O que fatalmente irá se espalhar para o pântano da sinofobia, uma vez que essas mesmas agências de inteligência veem a ascensão da China como “o maior desafio geopolítico e de inteligência “ do século XXI.
A Guerra ao Terror foi desmoralizada, ela agora está morta. Mas preparem-se para uma série de guerras de terror deslanchadas por um Hegêmona não acostumado a não dominar a narrativa, os mares e a terra.