Jeane Bordignon | Falando de amor

Nesses tempos em que a intolerância ainda nos atropela, fazemos da arte nossa força de resistência e nossa voz. Em palavras ou imagens, o amor ecoa, atravessa fronteiras e quebra barreiras. Tem sido uma felicidade imensa ver meu livro “É mais simples do que parece” indo para três estados (RJ, MG e PB), e até pra fora do país! A poeta Marta Cortezão, poeta amazonense que mora na Espanha, está fazendo essa história de amor e aceitação que escrevi com tanto carinho chegar ao outro lado do oceano. Que lindeza esse poder da arte de diminuir distâncias!

E nas telas da TV temos acompanhado um casal homoafetivo que está ganhando o carinho e a torcida até de pessoas mais conservadoras. Kelvin e Ramiro tornaram-se o maior destaque da novela Terra e Paixão com sua história que vem sendo contada com a maior sensibilidade. Quão significativo é o depoimento que o ator Amaury Lorenzo tem trazido em entrevistas e redes sociais, sobre uma senhora que o abordou na rua para contar que é religiosa, mas fecha mais cedo sua igreja para assistir a novela, em especial o casal Kelmiro? É encantadora essa força da arte, de tocar até aqueles que normalmente não aceitariam tal tema. Mas quando uma história é contada com cuidado, delicadeza e muita dedicação, a resposta vem.

A arte de contar boas histórias é o que eu mais amo na vida, chego a me sentir mais viva quando escrevo uma boa cena. E ver bons enredos sendo contados com sensibilidade e riqueza de detalhes é inspirador. A arte é alimento do artista, sabe? Muita gente critica as novelas como se fossem produto de baixa qualidade, mas elas são importantes nesse país onde o acesso à leitura não é tão democrático quanto devia ser. Novela ainda é uma forma da arte comunicar-se com o grande público. E ter uma resposta positiva a um casal homoafetivo dá esperança de que o mundo esteja melhorando.

Para quem não acompanha, vou tentar resumir. Ramiro é o capataz do maior empresário do agronegócio numa cidade do interior do MS. Já fez alguns serviços sujos para o patrão, mas não tem má índole. É um homem simples, que não pôde estudar porque precisou trabalhar desde muito cedo. Tinha uma noiva em sua cidade de origem, mas ficou claro, pelo comportamento do personagem ao falar dela e quando apareceu na trama, que era uma relação que ele só procurou porque era o esperado para um homem, aquela coisa de casar e constituir família. Na verdade, Ramiro sempre foi um solitário e que viveu para o trabalho.

Já o Kelvin é um rapaz gay muito bem resolvido com sua orientação sexual e forma de expressar sua identidade fora do padrão heteronormativo. Ele trabalha num bar onde serve mesas e atende alguns clientes intimamente também. Tem vivência sexual, mas é carente de afeto, é romântico, sonha em casar e ter uma família. Quando Ramiro conhece Kelvin, inicialmente sente-se incomodado com aquele rapaz afeminado e provocativo. Mas logo eles começam a construir uma amizade. São dois solitários que encontram um no outro um lugar de escuta e acolhida.

Kelvin é a única pessoa que trata Ramiro com respeito e dignidade naquela cidadezinha rural, e isso vai cativando o capataz, que vai se permitindo alguns gestos de afeto, mesmo que de forma bruta. Eles até constroem uma linguagem própria de carinho, os “apertões” que Ramiro dá na cintura de Kelvin. Com o tempo, os apertões ficaram mais carinhosos e surgiram outras vontades. Mas Ramiro sempre ouviu que homem com homem não faz as coisas que Kelvin provoca e o faz desejar. E luta contra as vontades que passam a existir dentro dele, sendo até rude com o amigo.

Só que o amor e o bem que fazem um ao outro acabam sendo mais fortes que toda aquela construção social machista e homofóbica. Ramiro aos poucos vem se permitindo cada vez mais gestos de afeto com Kelvin, que fica maravilhado com cada toque, cada abraço, cada jeito novo que o outro encontra de demostrar sentimento. Para o Ramiro, só o fato de pegar o Kelvin no colo e rodopiar como fez essa semana já é um avanço e uma emoção tão grande! E para o Kelvin, ter um momento assim com o homem que ama é encantador, é um sonho começando a se realizar.

Difícil resumir uma história tão bonita e profunda. A questão que eu queria chegar é que há uma grande torcida, inclusive de conservadores, pelo beijo que os personagens ainda não deram. Que momento, hein? Uma boa parcela do Brasil querendo ver o beijo de dois homens apaixonados. Que lindo ver o amor vencendo! Mas para um homem como Ramiro, é difícil quebrar essa barreira. Ele já está bem perto, tão perto que Kelvin poderia tê-lo beijado várias vezes já. Mas o rapaz respeita o tempo do seu amado, entende que o capataz ainda não está preparado para lidar com esse passo. E o Kelvin também parece gostar de ir devagar para aproveitar com plenitude cada pequeno avanço na relação deles. O amor é construção e caminhada. Talvez por isso estar sendo mostrado com tanta verdade, é que está tocando tanto as pessoas. Além de um texto bom, de todo um exército de profissionais por trás das câmeras, temos os atores certos em personagens que parecem terem sido feito para eles. Amaury Lorenzo (Ramiro) e Diego Martins (Kelvin) são artistas muito dedicados e talentosos. E amam a arte, desde crianças. É com esse amor que eles dão vida a esses personagens, tornando-os ainda mais especiais do que o autor tinha imaginado. Deve ser tão maravilhoso para um autor ver os personagens que ele criou sendo defendidos com tanta potência e brilho. Ainda mais com um enredo tão importante.

Assim como meus Jorge e Felipe do livro, Kelvin e Ramiro têm o direito de amar e serem felizes. E todos os Jorges, Felipes, Kelvins e Ramiros por esse mundo afora. O amor é poderoso e lindo, e que bom conseguirmos mostrar isso por meio da arte. E para quem se incomodar, só dedico a canção do Cazuza: “Piedade, senhor, piedade, pra essa gente careta e covarde”. Quem não tolera o amor merece muito mais a nossa pena do que a nossa raiva. São pessoas que não se permitem, não são felizes.

Prefiro canalizar a raiva para fazer mais arte e mais escrita. Na maravilhosa música Vaca Profana, Caetano começa rogando “Dona das divinas tetas/ Derrama o leite bom na minha cara/ E o leite mau na cara dos caretas”, mas no final já pede “Gotas de leite bom na minha cara/ Chuva do mesmo bom sobre os caretas”. Se a arte pode ser esse leite bom, vamos jogar mesmo na cara dos caretas. Que quando a gente faz com amor e fala de amor, até os “puretas” se rendem.

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