“Ainda ausente dos dicionários, palavra é um avanço da cultura brasileira”. O DV reproduz a coluna de Sérgio Rodrigues, escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”, publicada pela Folha de S. Paulo.
A palavra “bolsonarismo” ainda não está nos dicionários, é recente demais para tanto. Mas é provável que chegue lá, com uma definição semelhante a esta: “movimento político-social reacionário liderado pelo político brasileiro Jair Bolsonaro”.
Tamanha autoridade lexicográfica pode parecer excessiva para um político intrinsecamente menor, oriundo do baixo clero, que chegou à presidência por um desses acidentes históricos que às vezes cruzam o destino das nações.
Uma parte de mim —a mesma que desde 2018 não consegue sorrir sem uma ponta de tristeza— concorda com o argumento. Abaixo a poluição vocabular! Deixemos esse cidadão fora do Aurélio!
Convém lembrar, contudo, que dicionários não expressam nossos desejos sobre o que, num mundo ideal, deveriam ser a língua e a realidade à qual ela dá representação.
É por isso que lutar contra palavras —como é moda nos últimos tempos no campo dito progressista— é empreitada inglória e de resultados magros.
Toda língua tem vilezas e preconceitos embutidos no léxico, mas a fonte deles mora fora dos dicionários. Matar o mensageiro, o vocábulo, não elimina a má notícia, o fato.
“Bolsonarismo” parece um termo credenciado a entrar definitivamente para o glossário político brasileiro mesmo que, tudo correndo bem, seu inspirador seja derrotado na intenção de se reeleger.
Isso se deve ao fato de que, num processo ainda em curso, esse substantivo masculino formado a partir de um antropônimo (como “getulismo”, “lulismo” e outros termos da política) vem consolidando em torno de si uma espessa crosta de sentidos enraizados na história do Brasil.
Trata-se de um conjunto de valores e práticas que antecedem o protagonismo de Bolsonaro e a ele sobreviverão. E que, no entanto, até então não tinham sido nomeados em sua inteireza.
Escravocratas, monarquistas, integralistas, estadonovistas, apoiadores da “Redentora” e uma multidão de políticos “pragmáticos” defenderam, ao longo da história, parte do que hoje se agrupa sob o guarda-chuva bolsonarista.
O Brasil escravista que jamais se conformou com a abolição, segregador e violento em seus mecanismos de controle social, mas encantado com a autoimagem de “gentil”.
O Brasil aparvalhado de medo de ser engolido pela monstruosidade social que cultiva, e que nunca hesitou em açular bandidos, fardados ou não, contra o próprio povo.
O Brasil dominado que introjeta a lógica do dominador. O Brasil que se envergonha do Brasil.
Mas faltava algo para o casamento de palavra e coisa ser perfeito. Havia um pudor. Ora o racismo e a insensibilidade social se disfarçavam de preocupação com a economia, ora de apego à ordem, ao progresso, aos “valores familiares”…
O bolsonarismo tem o mérito cultural de rasgar esses véus. Sim, claro que o recurso aos velhos álibis e bichos-papões do conservadorismo ainda encontra lugar em sua retórica.
No entanto, tais disfarces surgem agora tão esfarrapados e farsescos que só enganam trouxas de carteirinha —sem falar de quem finge acreditar neles para se dar bem. Na prática, funcionam como sua própria denúncia.
Nunca uma galeria tão escancarada de deformados morais, abusadores sexuais, pistoleiros literais e metafóricos, santinhos do pau oco, carreiristas cínicos e corruptos se agrupou sob uma mesma bandeira.
Parece que a cultura brasileira conseguiu finalmente nomear algo importante. Vale lembrar que nomear um problema é o primeiro passo para resolvê-lo.