Os caçadores de fake news são tão perigosos para o bom jornalismo como os criadores das notícias falsas

Para a prática do bom jornalismo, os caçadores de fake news podem ser tão perigosos como os criadores de notícias falsas. Desde que o mundo é mundo, o repórter sempre esteve no meio do fogo cruzado entre os fatos verdadeiros e os falsos. A regra para não escrever bobagem é também tão antiga como o mundo: desconfiar dos dois lados. Ninguém tem a exclusividade da verdade. Nos dias atuais, ela pode estar em qualquer lugar, até na simples troca de recados entre dois amigos pelo WhatsApp. E não será porque 2018 é um ano eleitoral que essa guerra irá se intensificar. Ela é sempre intensa, desde que o repórter escrevia a sua matéria com uma pena de ave, molhando a ponta no tinteiro, até os dias atuais, quando usamos teclados de computadores. Claro, a modernização da indústria da comunicação facilitou a propagação das fake news,  como ficou comprovado na eleição do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Mas também facilitou a propagação da verdade. Mas, então, por que todo esse alarido dos caçadores de fake news?

A resposta para essa pergunta está na nossa frente, e é sobre isso que quero refletir com os meus colegas repórteres velhos e novatos. Com a queda da venda de anúncios e de assinaturas, os departamentos comerciais dos grandes grupos de comunicação se lançaram na busca de novos produtos para contrabalançar a queda no faturamento. E um desses novos produtos é a divulgação de que apenas as redações têm a capacidade de identificar as fake news e os fatos verdadeiros. E que as redes sociais – Facebook,  WhatsApp, blogues e outras mídias – são berçários de noticias falsas. Isso é uma grande bobagem. Os departamentos comerciais estão no direito deles. Aliás, é dever deles procurar novas fontes de renda para os jornais. Mas não à custa da honra alheia. Eu já estive dos dois lados do balcão. Durante três décadas e pouco, eu trabalhei em redação de jornal e, agora, nos últimos três anos, estou nas redes sociais. Tem gente boa e safada dos dois lados.

Por conta das palestras que faço nas redações do interior do Brasil, nas faculdades de jornalismo e nos movimentos sociais, tenho lido, ouvido e visto tudo o que se tem publicado a respeito das fake news. Posso afirmar que não são os jornalistas das redações que dizem que são os donos da verdade. São os marqueteiros dos grandes grupos de comunicação que dizem, nas entrelinhas das suas conversas e nas publicações, que apenas as redações têm a capacidade de separar a verdade da mentira divulgada pelas redes sociais. Os objetivos desse argumento dos marqueteiros são dois: o primeiro é tornar as redações referência da verdade, o que significa novos assinantes e anunciantes. E, por último, reforçar a ideia de que as redes sociais são berçários de mentiras. Aqui é o seguinte: a comunicação direta entre os nossos leitores veio para ficar e irá se intensificar muito mais. Se nós, repórteres, quisermos sobreviver, temos que investir na procura de fatos novos para contar. E não investir na posição de ser árbitro dos conteúdos das conversas nas redes sociais dos nossos leitores. Imagine a seguinte cena: dois dos nossos leitores conversam via WhatsApp e, no meio do papo, um deles diz:

— Para aí que vou ver no jornal se é verdade o que tu tá falando.

Todo repórter sabe que essa situação não existe. Aliás, todos nós soubemos que, depois que as informações – sejam falsas ou verdadeiras – começam a circular entre as pessoas, tornam-se verdades absolutas. E, desde que inventaram a imprensa, as nossas matérias competem com os boatos nas conversas entre as pessoas. E a maneira de ganhar a competição contra as mentiras é relatando os fatos de maneira simples e direta. Toda vez que enfeitamos uma notícia   no jargão jornalístico significa tentar tornar mais interessante, colocando uma palavra engraçadinha – estamos abrindo uma porta para os criadores de fake news.

Antes de seguir contando a história, eu vou fazer um relato pessoal. No final dos anos 80, eu estava em Bagé — cidade agropecuária na fronteira Sul gaúcha — fazendo reportagens sobre um conflito entre os fazendeiros e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Começou a circular uma notícia de que guerrilheiros estavam vindo da Nicarágua de ônibus para Bagé, para ajudar os militantes do MST. Por considerar a notícia um absurdo, não a publiquei e fui cobrado pela redação. Fiquei um dia batendo boca com os editores da época, que estavam sendo cobrados, porque o nosso concorrente tinha feito um carnaval com a notícia dos guerrilheiros. No final, fui retirado da cobertura.

Como nascia uma noticia dessas? Na época, as agências nacionais e internacionais de notícias faziam escutas nas emissoras de rádio que, raramente, devido a problemas econômicos, enviavam repórteres aos locais dos conflitos. Os serviços de inteligência do governo se aproveitavam: nutriam os noticiários das rádios com notícias falsas, tipo a dos guerrilheiros de ônibus. As agências se encarregavam de fazer a notícia circular pelo mundo. Contei essa historinha para chegarmos ao ponto-chave da nossa conversa. Fazer uma notícia simples e direta significa dar condições de trabalho ao repórter. O que não existe hoje nas redações dos grandes jornais, devido às demissões em massa de jornalistas. O que nós temos hoje são repórteres trabalhando em várias plataformas da empresa — jornal papel, site, blog, vídeos etc –, ganhando um salário baixo e convivendo com a pressão de ser demitido a qualquer hora. O jornalismo de qualidade custa caro. Ele é o único que irá garantir a sobrevivência das redações. É bom os marqueteiros lembrarem essa realidade aos donos dos grandes jornais.

 

Histórias Mal Contadas é o blog do repórter Carlos Wagner, que você acompanha clicando aqui.

 

 

 

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