Ana D`Avila | Segunda-feira qualquer

Por se julgar analfabeta cultural, ia tentando ler. Mas não entendia nada que lia. Rousseau, Epicuro, Goethe. Nem política, nem levezas. Nem compêndios, nem brochuras. Por que insistia em escrever sem saber ao certo o que queria?

Sombra e água fresca, talvez. Seu futuro estava ameaçado. Como seria daqui dez anos, quando beirasse os 80? Uma velha pobre! Uma louca urbanamente sofrida! Intelectualmente sem visão. Não sabia nem se reconhecia. Mas ia trilhando a vida, ao sabor do vento.

De tantas segundas-feiras que engolia, esta era só mais uma. Sua vida, em tudo, era mediana. Não era pobre, nem rica. Nem morena, nem loira. Nem velha, nem nova. Nem casada, nem solteira. E seus olhos? Meu Deus, seus olhos tinham um pouco do arco-íris! Nuances de castanho-esverdeado e um pouquinho de vermelho no dito branco do olho. Estaria anêmica?

Seus pés, pequenos. Suas mãos, pequeníssimas. Por muito pouco teria mãos de anã. Mas sua cultura: parca. Teimava nas letras. Honrada com seu diploma universitário conseguido a duras penas. Trabalhava o mês inteiro para no final entregar todo seu dinheiro para a faculdade. Que no final, financeiramente, nem compensou.

A comunicação fez seus dias mais felizes. Na televisão, ameaçou brilhante carreira. Mas desistiu. Se achava nariguda para o vídeo. Seria uma espécie de personagem de Almódovar. Não gostava que citassem seu nome nas edições televisivas. Era diferente das outras repórteres. Numa segunda-feira, fugiu da redação. Como quem abandona uma sina. Um nascer para nada. Ou, talvez, para tudo. Pouco dada à amizades profundas. Não falava com colegas. Nem tampouco com entrevistados. Seus contatos eram visuais.Telepáticos.

Numa segunda-feira nublada, seguiu para a praia. Onde agora morava. Um lugar cheio de pessoas interioranas, fofoqueiras e ignorantes. Todos ali eram seres burros e enlouquecidos. Homens casados desejando e amando times de futebol no lugar de mulheres e filhos. Incompreensível. Quando seus times ganhavam, saíam alterados pela rua gritando e gesticulando, como se fossem bichos cuja jaula havia sido liberada.

Numa segunda-feira de absurdos, ela entrou mar adentro. E nunca mais saiu. Como se o suicídio tivesse sido planejado. Depois não precisou mais de livros famosos. Cultura popular ou aristocrática. Estágios em televisões. Caras e bocas de Almódovar. Os bombeiros resgataram seu corpo, já estufado de água salgada, vinte quilômetros adiante, cuja carne há uma semana já putrefacia. Morreu. E era, casualmente, outra segunda-feira.

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