Recomendamos a reportagem do jornalista Eduardo Reina, publicada pelo Consultor Jurídico, ConJur
Mesmo com a consolidação do conjunto normativo e da jurisprudência no combate à violência contra as mulheres, o Poder Judiciário ainda carece de aperfeiçoamento para agir adequadamente diante de cada caso que surge diariamente, desde a investigação dos fatos até as audiências de instrução e os julgamentos nos tribunais, passando pela capacitação e pelo aprimoramento dos profissionais que lidam com esse tipo de ação criminal. Esse aperfeiçoamento deve nortear o combate à violência de gênero daqui para frente, de acordo com estudiosas do assunto.
Há vigente no Brasil um conjunto normativo potente de combate à violência contra a mulher, em suas diversas formas, que tem como principal marco a Lei Maria da Penha (11.340/06), mas não só ela. Outras normas foram editadas posteriormente, como a Lei Lei Joanna Maranhão (12.650/12), a Lei do Minuto Seguinte (12.845/13) e a Lei Carolina Dieckman (12/737/12), entre outras, mas elas não são suficientes, tanto que há um aumento considerável da violência contra as mulheres.
Pesquisa de jurisprudência feita pela Conjur no Superior Tribunal de Justiça aponta a existência de 202 acórdãos e 3.140 decisões monocráticas para o crime de feminicídio. Já ações por violência doméstica geraram 1.595 acórdãos e 30.855 decisões monocráticas na corte superior. Quando o tema é estupro, os números crescem: há 6.189 acórdãos e 58.146 decisões monocráticas. A agressão contra mulheres registra somente 15 acórdãos e 1.509 decisões monocráticas, dados que chegam a 742 acórdãos e 13.648 decisões monocráticas quando o crime é de violência sexual.
A quantidade de casos de violência contra as mulheres apresenta tamanho gigantesco no Brasil. Em 29 meses — entre janeiro de 2020 e maio de 2022 — foi registrada a expedição a cada minuto de duas medidas protetivas de urgência para meninas e mulheres em situação de violência doméstica. De acordo com o estudo “Avaliação sobre a aplicação das medidas protetivas de urgência da Lei Maria da Penha”, uma parceria entre o Conselho Nacional de Justiça, o Instituto Avon e o Consórcio Lei Maria da Penha, nesse período foram registradas 572.159 medidas dessa natureza em todo território nacional. Os resultados foram divulgados nesta semana.
– De acordo com os números do Monitor da Violência, somente no primeiro semestre de 2021, quando o Brasil passava pela segunda onda da pandemia da Covid-19, foram deferidas aproximadamente 152 mil medidas protetivas de urgência em 24 estados da federação, o que dá cerca de uma MPU a cada dois minutos e significou um aumento de 15% em relação ao mesmo período do ano anterior. Então, se as mulheres estão cada vez mais procurando o sistema de Justiça em busca de medidas protetivas, é porque esse é um instrumento que tem eficácia – afirma Reijjane de Oliveira, juíza auxiliar da Coordenadoria Estadual das Mulheres em Situação de Violência Doméstica (Cevid) no Tribunal de Justiça do Pará.
Muito o que mudar
á muito o que transformar ou aperfeiçoar no combate à violência contra as mulheres feito pelo Judiciário.
– Num país que em pleno século XXI ainda ostenta o vergonhoso e lamentável quinto lugar no mundo em violência contra as mulheres, quando temos uma lei de proteção às mulheres no âmbito doméstico e familiar que é considerada pela ONU a terceira melhor do mundo, resta evidente que há muito a caminhar para que se alcance a igualdade de gênero e o fim das violências contra as mulheres – observa Reijjane de Oliveira.
Especificamente quanto à maior efetividade da Lei Maria da Penha, e em especial das medidas protetivas de urgência, faz-se necessário implementar mecanismos de fiscalização dessas ferramentas, e isso não pode ficar restrito ao Poder Judiciário, segundo as especialistas.
– O Poder Executivo precisa executar políticas públicas que garantam a assistência às mulheres conforme prevê a Lei Maria da Penha. A política de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra as mulheres precisa descentralizar os serviços de atendimento às mulheres para o maior número de municípios, pois, atualmente, ficam restritos às capitais e aos municípios de maior porte. Inclusive é preciso que o Estado assegure o direito das mulheres em situação de violência doméstica e familiar, a assistência judiciária gratuita, conforme preveem os artigos 27 e 28 da Lei Maria da Penha. Além disso, é fundamental investir na formação de pessoal para o atendimento com perspectiva de gênero, uma vez que, para garantir um serviço que não revitimize as vítimas, é necessário que haja pessoas qualificadas – analisa a juíza do Pará.
A desembargadora aposentada do TJ-SP Kenarik Boujikian também afirma ser necessária uma atuação adequada dos três poderes, criando condições para a aplicação da legislação vigente.
– A existência da normativa é, à toda evidência, um avanço, fruto das lutas das mulheres, mas é preciso que sejam integralmente e radicalmente executadas. No que diz respeito ao Judiciário, é fato que ainda há muito para caminhar. Creio que é indispensável a realização de capacitação de todos os juízes, não só os que tratam diretamente da aplicação das leis específicas, em atividades multidisciplinares, para que todos os magistrados possam compreender a sociedade patriarcal, machista e misógina que temos. Sem essa primeira compreensão, não vejo a possibilidade de avanço dentro do sistema de Justiça – explica Kenarik.
Uma necessidade urgente no sistema judiciário nacional, de acordo com a advogada criminalista Maira Pinheiro, é a criação de concurso para contratação de mais profissionais, incluindo o uso de psicólogos na fase de produção de provas.
– Não adianta nada você criminalizar a violência psicológica, como aconteceu no ano passado, e foi um avanço legislativo importante, se você não tem instrumentos para auferir a dimensão do trauma psicológico. Então, se você não tem uma avaliação psicológica, não tem uma relação entre o sofrimento psíquico daquela mulher e as condutas perpetradas pelo agressor, então a criação de um novo crime se torna uma letra morta – diz ela.
Isso, segundo a advogada, significa haver interdisciplinaridade:
– O sistema de Justiça sozinho, sem se valer de outras áreas do conhecimento, sem se valer de outras estruturas da administração pública, não vai dar conta de erradicar a violência contra a mulher, porque ele trabalha basicamente com a punição. Uma punição que não torna a vida daquela mulher mais segura. É preciso existir a transdisciplinaridade. Trazer outros instrumentos da organização pública, das outras áreas do conhecimento. Senão, as mulheres não vão deixar de morrer. Não é a existência de um processo criminal que vai dissuadir um agressor de agredir de novo.
– A repressão penal desacompanhada de políticas públicas aptas a promover a urgente mudança cultural acerca de temas como desigualdade de gênero não é capaz de resolver o problema – afirma a advogada Ana Maria Colombo.
Para ela, é preciso investir em educação para formar novas gerações conscientes desse crescente problema e, assim, evitar sua ampliação.
– Nesse sentido, vale destacar medidas como a Lei nº 14.164/21, que incluiu nos currículos da educação básica nacional o tema da prevenção da violência contra a mulher. Medidas como essa são essenciais para a formação de novas gerações de mulheres mais esclarecidas e com maior consciência de seus direitos, bem como de homens mais conscientes do seu papel na luta contra a violência de gênero.
Em que pese não ser possível assegurar a sua plena eficácia (assim como ocorre com qualquer outro instrumento de repressão ou de prevenção), não se pode retirar a importância das medidas protetivas de urgência como ferramentas de proteção de vítimas de violência de gênero. Além disso, tem-se visto a atuação relevante das instituições na luta contra a violência doméstica, estruturando-se importante rede de apoio àquelas mulheres que conseguem romper o ciclo da violência e denunciar os abusos sofridos.
– Não se pode, contudo, atribuir ao Judiciário e à polícia a exclusividade na árdua tarefa de combater esse tipo de violência. É indispensável a promoção de políticas públicas diversas, especialmente dirigidas à raiz do problema, promovendo a necessária mudança cultural a respeito dos papeis de gênero na nossa sociedade – diz Ana Maria.
Entre os mecanismos que estão sendo criados em várias partes do Brasil para dar efetividade às medidas de prevenção à violência, destacam as especialistas ouvidas pela ConJur, está a Patrulha Maria da Penha, do município de Diadema (SP), onde a Guarda Civil faz uma classificação de risco das mulheres que têm alguma medida protetiva e fazem um acompanhamento com visitas domiciliares com periodicidade de acordo com a gradação de risco do caso. A medida protetiva de urgência é um instrumento que, se implementado junto com o Poder Executivo e as forças de segurança, pode ser muito eficiente. E, muitas vezes, é do que as mulheres precisam em um momento em que a violência está em um estágio mais agudo.
Capacitação
De acordo com as advogadas ouvidas pela ConJur, os tribunais ainda precisam investir na criação de varas especializadas e dotá-las de equipes multidisciplinares, bem como fazer a capacitação permanente de todos os membros do Judiciário, independentemente da competência da matéria e do grau de jurisdição, inclusive de servidores e servidoras, para que possam atuar com perspectiva de gênero. O objetivo é não possibilitar a revitimização das mulheres dentro dos fóruns, sendo julgadas com viés moral por não cumprirem o papel que lhes foi atribuído pelo patriarcado.
– É importante frisar que a política de enfrentamento à violência contra as mulheres não é de responsabilidade apenas do Judiciário. A Lei Maria da Penha é um microssistema e prevê uma política integrada por meio de ações articuladas da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios e de ações não governamentais, estabelecendo no seu artigo 8º as diretrizes para essa política – diz Reijjane.
Uma das principais questões que precisam ser aprimoradas, sugerem as especialistas, é a articulação entre o Executivo e o Judiciário. Porque sem as políticas públicas de acolhimento, sem os equipamentos que oferecem abrigo, assistência psicológica e mecanismos de desenvolvimento de autonomia financeira, as vítimas se tornam reféns da resposta que o sistema judiciário tem a oferecer a elas.
– O sistema de Justiça Criminal, através da punição, não resolve o problema da mulher vítima de violência, porque a mulher precisa estar empoderada para sair dessa situação. E isso passa pela demanda da autonomia, que não é só autonomia financeira, mas também autonomia emocional. Então, sem um local de acolhimento, que deve ser provido pelo Executivo, as medidas que o Judiciário adota ficam sem efetividade – explica Maira Pinheiro, que é membro do Coletivo Bem Viver.
No âmbito dos tribunais, e numa intersecção com as polícias, diz Maira Pinheiro, “a gente precisa qualificar muito a produção de provas nos processos que envolvem violência de gênero”.
Também é sugerida mudança nas oitivas das vítimas dentro das delegacias, momento que inúmeras vezes gera constrangimento às mulheres.
– Uma das questões que atrapalham muito a apuração desse tipo de crime aqui em São Paulo é o fato de os depoimentos em delegacia serem colhidos por redução a termo. Ou seja, a mulher relata e o policial escreve fazendo um relato com suas próprias palavras. Com isso, muito se perde com relação ao conteúdo do depoimento. E na violência de gênero, na violência que acontece num espaço privado, os detalhes têm muito significado. Então, uma mudança urgente, que tem de acontecer para ontem, é que o depoimento das vítimas e das testemunhas, principalmente nos casos que envolvem violência contra a mulher, deveria ser colhido com registro áudiovisual. O que inibe condutas autoritárias, vitimizantes, por parte das forças policiais e permite que o Judiciário tenha contato com a história de forma mais qualificada – explica Maira.
De acordo com as advogadas, nas varas de violência doméstica é comum que as ações penais que envolvem lesão corporal de natureza leve sejam tratadas como processos de menor complexidade. Também há reclamação sobre a pauta dos juízes nos tribunais serem quase sempre sobrecarregadas.
– Isso significa que a audiência de instrução desses casos vai ser muito atropelada, muito apressada. Isso acaba sendo extremamente violento para as mulheres que estão ali depondo, porque aquele fato violento dificilmente é o único que ela viveu. Para resolver isso seria preciso criar mais varas de violência doméstica – pede Maira.
Falta de compreensão
Outra medida necessária é uma mudança na cultura do Judiciário, para que se compreenda que a violência doméstica é um fenômeno complexo. Ao questionar uma mulher sobre o abuso que ela sofreu, não se pode deixar de levar em consideração que existe um ciclo da violência. E que outros episódios relacionados àquele relacionamento têm relevância probatória também. Não se deve restringir a violência ao único fato registrado no boletim de ocorrência, explicam as especialistas.
– A gente teve um avanço importantíssimo no protocolo de julgamento com perspectiva de gênero que o CNJ lançou no ano passado. Mas aquele documento está a anos-luz de ser implementado pelo Judiciário de maneira geral. O conteúdo dele é extremamente avançado, mas a prática está muito longe disso – observa Maira.
– Importa destacar o necessário desenvolvimento de mais ambientes de acolhimento da mulher vítima de violência, seja no Judiciário, na polícia, na Defensoria Pública, na advocacia ou no Ministério Público. Por suas características, a violência doméstica depende muito da postura da própria vítima para que seja devidamente identificada e repreendida pelo Estado. Assim, é indispensável a existência de espaços devidamente estruturados para receber, ouvir e acolher essa vítima, evitando que ela seja submetida a nova violência quando enfim se encoraja a buscar apoio. Mais do que isso, é preciso que as instituições sejam ambientes que exprimam confiança a essa mulher, para que ela se sinta segura de que está agindo da forma correta – reivindica Ana Maria Colombo.
Postura de agentes públicos
Também é destacada pelas estudiosas do assunto a urgente necessidade de mudança de postura dos agentes públicos no tratamento, na avaliação e no julgamento de casos de violência contra as mulheres. Há agentes responsáveis pela aplicação ou pela fiscalização da lei que colocam suas crenças pessoais à frente dos direitos que são assegurados às vítimas.
– Para além dos efeitos disso nos casos concretos, a repercussão de tais fatos traz também uma descrença generalizada no sistema, minando a necessária confiança que as instituições demandam para que funcionem adequadamente. Essas situações são de extrema gravidade e devem ser devidamente apuradas pelas respectivas corregedorias, mas tais casos não refletem a realidade do sistema judiciário brasileiro, que é importante força atuante no combate à violência doméstica – analisa Ana Maria.
Um caso que ganhou repercussão, conta a juíza Reijjane de Oliveira, foi o da audiência de um processo em que se apurava uma acusação de crime contra a dignidade sexual (estupro), e a única mulher na audiência era a suposta ofendida. Portanto, era nessa condição que ela estava na audiência — de vítima.
– Mas ela foi tratada como se fosse a responsável pelos fatos que eram imputados ao então acusado. Falo desse caso porque foi emblemático, tendo gerado inclusive a Lei nº 14.245/21, que ganhou o nome de Lei Mariana Ferrer. E essa lei visa exatamente a coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas e estabelece causa de aumento de pena no crime de coação no curso do processo – detalha a juíza.
O Direito Penal, ainda que seja relevante instrumento de coibição de condutas, e, por consequência, de mudança de comportamentos, não pode ser a única e principal ferramenta utilizada para a solução de um problema social e comportamental que tem forte raiz cultural. A sociedade brasileira vive uma realidade em que o gênero ainda demarca de forma expressiva a construção e a socialização de uma pessoa, segundo as advogadas.
Outro problema é que o Judiciário tende a entender que a vigência da medida protetiva deve estar atrelada à vigência de um inquérito policial e de uma ação penal. Isso significa que se a mulher quiser só uma proteção, ela não consegue.
– Ela precisa também reportar o crime e providenciar que o agressor seja punido e responsabilizado criminalmente para ela poder manter a medida. Na verdade, a punição ao agressor através de uma pena não traz nenhum tipo de melhora para a vida da mulher. Atrelar é um limitador da eficácia desses instrumentos porque muitas vezes pode dissuadir a mulher de buscar alguma ajuda – conclui Maira Pinheiro.
Para as especialistas, ainda se fazem necessárias ações como a do CNJ ao expedir recomendação aos órgãos do Poder Judiciário para que apliquem o Protocolo de Perspectiva de Gênero e a do Congresso Nacional ao editar a Lei Mariana Ferrer.
– É crucial os Tribunais de Justiça priorizarem sua execução e que o CNJ envolva nos debates os demais atores dos sistemas de Justiça e segurança pública, responsáveis pela implementação das medidas protetivas, e organismos da sociedade civil que atuam pelos direitos das mulheres – afirmou Wânia Pasinato, integrante do Consórcio Lei Maria da Penha e coordenadora da pesquisa divulgada pelo CNJ.